Brasil X França: A briga no mar na Guerra da Lagosta

Os últimos dias no cenário político mundial tem sido de tensão entre dois gigantes de cada lado do atlântico. A crise provocada pelas queimadas sem controle da Amazônia levaram Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron a ficarem nariz a nariz, entre declarações inflamadas, patacoadas tupiniquins e fervura comercial entre Brasil e França. A pauliceia ainda corre quente nos noticiários e todo novo movimento é motivo de suspense, manifestos e aquelas briguinhas infantis nas redes sociais.

No entanto, Muito além de todo o imbróglio envolvendo Amazônia, Mercosul e União Européia, a relação por vezes de amizade entre brasileiros e franceses já passou por momentos tensos onde o sangue corria nos olhos com gosto. A maior parte deles no esporte, mais exatamente no futebol e no automobilismo, onde esta briga de foice entre a arara e o galo é mais contundente.

Nos gramados, os embates em qualquer copa sempre são motivo para o mundo arregalar os olhos e esperar lances de emoção. Nas pistas, o confronto entre Ayrton Senna e Alain Prost na F1 é, até hoje, algo insuperável em todos os parâmetros de rivalidade no esporte a motor. Uma verdadeira guerra declarada nas pistas que acabou em uma sincera e bela amizade que transcendeu os limites da vida e da morte.

Ayrton Senna e Alain Prost. O mais próximo do conceito de guerra que Brasil e França já chegaram na prática. Da rivalidade nas pistas da F1 nasceu uma bela amizade, que transcendeu os limites da vida e da morte (Sutton)

No entanto, bem antes da recente crise, houve um momento na história de ambos os países que a tensão e a queda de braço chegaram próximos ao limite da beligerância completa. Entre 1961 e 1963, brasileiros e franceses se olharam nos olhos com sangue fervendo nas veias, prontos para um embate muito maior do que a bola e o volante. E tudo isto por conta de um modesto crustáceo, saborosa iguaria para ambas as nações e bom argumento para fazer divisas. De confusão comercial a página cômica, foi assim que rolou naquele verão fervente a curiosa Guerra da Lagosta.

Lagosta é peixe? Canguru é ave?

Tudo começou no inicio da década de 60, quando barcos franceses começaram a pescar lagostas na costa brasileira, mais precisamente no litoral de Pernambuco. Foi a saída que aquele pais encontrou depois de esgotar a exploração do crustáceo no próprio litoral e nos países da costa ocidental africana. O produto era uma das fontes de renda mais lucrativas no Brasil, que lucrava quase 3 milhões de dólares anuais com este comércio, concentrado nos portos de Fortaleza (CE) e Recife (PE).

Em 1961, os primeiros barcos franceses começavam a chegar no litoral pernambucano, tendo autorização para fazer pesquisas na região. No entanto, a intenção era outra: Simplesmente caçar lagostas. Sabendo disto, a Marinha do Brasil não perdeu tempo e cancelou a licença imediatamente, um problema aparentemente resolvido. Após isto, a França voltou a carga e pediu autorização para atuar nas águas brasileiras, sem interferir na chamada plataforma continental, de propriedade brasileira. No entanto, os problemas estavam apenas começando.

A lagosta, uma iguaria razoavelmente cara na mesa de restaurantes pelo mundo. Pesca do crustáceo na costa nacional rendia perto de 3 milhões de dólares no início dos anos 60 (Reprodução)

No ano seguinte, em janeiro, um pesqueiro francês de nome Cassiopée foi capturado pela corveta Ipiranga, da Marinha brasileira, depois de ser pego com a boca na botija pescando lagostas de forma irregular, de acordo com o acertado. Foi o suficiente para a França partir para o debate. O Brasil foi a briga tendo embaixo do braço as normas estipuladas pela Convenção de Genebra, em 1958.

Segundo o que fora acordado naquela Convenção, os recursos minerais, biológicos, animais ou vegetais são de propriedade do país costeiro. Sendo assim, o Brasil alegou que a lagosta, por se deslocar caminhando sob terra brasileira (apesar das águas serem livres, a plataforma continental é território brasileiro, vale lembrar) era de propriedade brasileira, e ponto final. No entanto, a França não perdeu tempo e respondeu ferozmente, alegando que a lagosta podia ser considerada um peixe, já que se deslocava pelas águas de um lado a outro em breves momentos de nado. Se assim fosse, a lagosta deslocaria-se em águas internacionais, o que a Convenção permitia para exploração livre.

Corveta Ipiranga, da Marinha do Brasil, responsável pelo aprisionamento do pesqueiro francês Cassiopée, a mais polêmica do período. A velha embarcação não sobreviveu para “contar a história” do fato. Naufragaria em 1983, na costa de Fernando de Noronha (Vimeo)

E não demorou muito, a lógica francesa foi derrubada no Brasil e da forma mais cômica e curiosa possível. Partiu do comandante da Marinha e oceanógrafo Paulo de Castro Moreira da Silva a pérola do conflito. Segundo ele, estamos diante de uma argumentação interessante: Por analogia, se a lagosta é um peixe porque se desloca dando saltos, então o canguru é uma ave. Isso ainda estava longe do fim, e a discussão que beirava o ridículo estava partindo para fins mais pesados.

Tensões, autorizações, enfurecimento e uma injustiça a De Gaulle

Neste embalo, os pescadores do nordeste iniciaram uma série de pressões e manifestos contra o governo, ameaçando até a agir pelos próprios meios contra os franceses que ousassem pescar naquele pedaço do litoral brasileiro. Alegavam estar sofrendo concorrência desleal, além de estarem acusando os intrusos de praticarem uma modalidade de pesca predatória chamada pesca de arrasto, que levava tudo que encontrava pela frente no fundo da plataforma.

João Goulart acabou interferindo na ordem das negociações, permitindo a pesca da lagosta pelos franceses em nosso litoral. Uma manobra perigosa e errada, pois a revolta popular, sobretudo dos pescadores do nordeste que não descartavam o uso da força se preciso fosse, colocou a autorização por terra dias depois (Reprodução)

A tensão chegou ao ápice no fim de janeiro de 1963, quando um navio de patrulha da Marinha detectou a presença de pesqueiros franceses na região que, mesmo alertados, negaram as ordens do navio nacional para retirarem-se. A Marinha tinha ordens de usar a força se preciso fosse, e com isto as embarcações francesas não perderam tempo e retiraram-se.

Dias depois, não só houve a liberação dos pesqueiros e das cargas como também o então presidente João Goulart, quebrando o protocolo das negociações entre os dois países, concedeu diretamente ao embaixador francês no Brasil, Jacques Baeyens, autorização especial para que seis barcos voltassem a pescar lagostas na região. Foi o suficiente para a revolta dos pescadores aumentar a carga, fazendo a recém-concedida autorização ser cancelada pouco tempo depois.

Agora, era a vez dos franceses protestarem com ferocidade. O embaixador não aceitou a decisão brasileira, o governo em Paris não conteve a ira e, neste rodeio todo, o presidente e general heroico da Segunda Guerra, Charles de Gaulle, acabou como difamador do Brasil ao lhe ser atribuída a icônica frase o Brasil não é um país sério. Na verdade, a citação partiu do diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, intermediador das negociações à época. No entanto, até hoje e de forma errônea, é dada como autor da citação o velho general francês.

Recepção ao presidente Charles de Gaulle (em pé no carro, em destaque), herói francês da Segunda Guerra, na visita ao Rio de Janeiro, em outubro de 1963. Por conta de erros históricos, acabou com fama de “difamador” para alguns ao lhe ser atribuída a icônica frase o Brasil não é um país sério, dita, na verdade, por um diplomata brasileiro. Uma injustiça histórica para com o velho general (Arquivo Nacional)

Marinhas em prontidão, jornais colocando fogo e EUA encurralado

Como medida extrema as restrições, a França enviou um navio de guerra da própria armada com a missão de proteger os pesqueiros franceses que atuavam pelo litoral brasileiro. Sendo assim uma resposta militar vinda de Paris, Brasilia também tinha de dar a réplica, quase que por obrigação. O Conselho de Segurança Nacional foi convocado para buscar uma forma de salvaguardar a soberania brasileira, ameaçada por força estrangeira, como o determinado.

Cruzador Tamandaré (ao centro, maior) e mais quatro contratorpedeiros da Marinha do Brasil rumo a costa nordestina para a mobilização. Apesar da pronta reação, resposta de Brasilia mostrou a fragilidade da armada nacional naqueles tempos (Defesabr)
As “fortalezas voadoras” B-17 da Força Aérea Brasileira (FAB) também foram rumo a costa nordestina para a mobilização em caso de possível invasão (FAB)

A Marinha entrou em prontidão, especialmente em Salvador (BA), onde as embarcações la ancoradas entraram em prontidão rigorosa. Navios eram deslocados para Natal (RN) e Recife, esquadrões de aeronaves seguiam a mesma instrução. Uma resposta rápida, mas que também revelou a fragilidade de equipamento e logística da armada naqueles tempos. Uma situação tão complicada que as embarcações engajadas mal conseguiam manter-se na missão por mais de trinta minutos, precisando revezar constantemente.

A guerra estava no ar ao menos na opinião pública, e os jornais pregavam pelo conflito nas reportagens. O periódico Correio da Manhã bradava na capa Navios franceses atacam no Nordeste jangadeiros que pescam lagosta, o Última Hora destacava Frota naval da França ronda costa do Brasil. Nos jornais franceses, vinha a tona a constante lembrança que a armada francesa contava com a tecnologia nuclear, coisa ainda bem distante no lado tupiniquim.

Os jornais colocavam fogo no conflito antes mesmo de algum tiro ser, possivelmente, disparado. Nesta, o destaque era a posição estática do destroyer francês Tartu na costa do nordeste brasileiro, sem ameaças maiores (Plastibrasil)

No jogo de apoios, dentro do ambiente diplomático, outra questão pegava fundo. A França tinha para si que os EUA estivesse apoiando-a, mesmo que não declaradamente, o Brasil. Na verdade, os americanos deixaram claro, em mensagem enviada a Brasilia, que a frota de navios de guerra brasileiros – arrendados à época aos EUA – não podiam, por contrato, se envolver em conflito com países amigos dos americanos, ordenando expressamente a volta as bases.

Mas o Brasil, assim como a Argentina faria em 1982 na Guerra das Malvinas, usava com argumento contra os americanos o chamado Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que diz respeito a assistência dos países pan-americanos caso um deles fosse agredido por uma força de outro continente. Além deste argumento, o Brasil tinha outro ponto a apresentar que ia direto ao brio e orgulho das forças armadas yankees: A declaração de guerra do Brasil ao Japão em 1941, posteriormente ao ataque a base de Pearl Harbor, que foi feita em solidariedade aos americanos.

Do tenso ao cômico e a atualidade

Tudo cessava depois de fevereiro de 1963. Cartas entre Goulart e De Gaulle e a volta do dialogo empurraram a questão do status de tensa para o de cômica. (Café História)

No entanto, em março de 1963, o aparente conflito desaparecia tão rápido quanto tinha se instalado. A França retirou o navio de guerra e as demais embarcações por ele protegidas, conseguindo o Brasil impedir a violação da soberania nacional sem disparar um único tiro. O diálogo voltou e a paz foi selada em um banquete meses depois.

Foi um embate perigoso para o Brasil, mas sanado sem confronto direto, mesmo diante uma potência militar com poderio muito maior que a da armada nacional. Apesar da aparente vitória, o caso virou história cômica de um tempo inocente de nossas plagas, convertendo-se também em marcha carnavalesca e até num animado samba do eterno malandro Moreira da Silva.

Hoje, os limites aquáticos nacionais – a chamada Amazônia Azul – tem regras e delimitações fronteiriças mais bem determinadas e rígidas do que nos idos dos anos 60. No entanto, por não termos uma capacidade de exploração pesqueira condizente com o potencial de nossa costa, barcos estrangeiros arrendados por empresas brasileiras – especialmente japoneses – executam o serviço de pesca neste espaço. Algo que torna mais difícil diferenciar embarcações a serviço do país e navios não autorizados a exploração de nosso litoral, que nos levam frutos do mar e produzem receita com produtos nacionais.

A atual crise vem apenas para reforçar, de alguma forma, a antiga rivalidade entre brasileiros e franceses. No entanto, a brincadeira com a Amazônia é muito maior do que um debate sobre a forma de locomoção de uma lagosta. Trata-se de uma área de preservação, habitada e explorada por indígenas, lar de rica fauna e pedaço raro de mata nativa que, de uma forma ou outra, está sempre nos olhos de inescrupulosos exploradores agroindustriais. Cabe ao Brasil agir com inteligência no meio da tensão, algo que tem faltado ao atual mandatário de Brasilia, dono das mais infelizes patacoadas diplomáticas dos últimos tempos (Goulart deve estar se revirando no tumulo).

Água pra apagar o fogo? Macron e Bolsonaro são os protagonistas da nova crise entre Brasil e França. E, desta vez, a Amazônia não é um crustáceo de poucos, mas uma floresta de muitos e um acordo comercial em jogo, entre patacoadas e pressões tensas (Reprodução)

Para quem não entendeu a história toda ou teve alguma dificuldade em compreender algo, o programa Quintal da Cultura, da TV Cultura, produziu uma representação muito interessante sobre o fato, literalmente traduzida para crianças. É uma atração infantil, mas para interpretar melhor a questão, vale a pena ver.

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