Guernica, 80: Da guerra para a arte

O retrato da crueza do fascismo lançado contra uma simpática e inocente cidade espanhola. Esta é Guernica, obra de Picasso que retratou em infinidade de simbolismos e no mais puro acinzentado uma página negra na guerra civil espanhola, conflito que serviu de ensaio para Alemanha e Itália pra a Segunda Guerra (Reprodução)

Qual é o limite do fascismo?

Qual é o limite de uma ditadura?

Qual o limite de toda e qualquer forma de repressão e violência em regimes autoritários?

Não pareciam haver limites para autoritários quando esta tela – Guernica – nasceu, muito embora se permitisse um pouco de ousadia para explicar o autor dela. Consta numa história quase urbana que, indagado por um oficial alemão sobre a autoria da obra (foi você que fez isso?) o autor respondeu veementemente: Não, foram vocês!

Este atrevido era um certo cidadão de boina, atendendo pelo nome de Pablo Picasso, um dos maiores expoentes da arte mundial. Pintor, escultor, ceramista, poeta, dramaturgo e… espanhol. Nascido em Málaga, um gênio ao seu tempo e responsável, junto dos franceses Henri Matisse e Marcel Duchamp, por grandes avanços nas artes plásticas no início do século XX.

Neste mesmo período, a amada Espanha de Picasso estava fervendo como nunca. A monarquia não tinha mais prestigio, tendo o Rei Alfonso XIII deixado o país em 1931 no meio das pressões entre monarquistas e republicanos.

https://www.youtube.com/watch?v=LXgW_hArHN4

Contando com o auxilio de tropas alemãs, italianas e portuguesas, Francisco Franco implantou seu regime fascista em 1939, mas não escaparia de ver uma das barbáries da guerra que consolidou seu poder imortalizado em pintura para sempre (Reprodução)

Terminado o império, restou outra tensão ainda maior: socialistas X nacionalistas. Caminhando para governos de orientação socialista, a Espanha acabou imergindo, depois de quase uma década de disputas, em uma violenta guerra civil a partir de 1936. De um lado, os socialistas e militares legalistas, favoráveis ao governo, do outro os nacionalistas, de orientação fascista, sob o comando de Francisco Franco.

A arte vivendo um momento de novas experiências e tendências enquanto, do Marrocos (sob domínio espanhol), Franco e seus comandados regressavam a Espanha para o combate. Verdadeira luta encarniçada entre vários flancos e que se arrastaria por três anos, tendo os apoios de Alemanha, Itália e Portugal, ambos já vivendo regimes fascistas.

O bombardeio de Guernica foi, de longe, o mais marcante dentre tantos embates na guerra. Cidade da província de Biscaia, uma comunidade autônoma situada no País Basco, Guernica tinha pouco mais de 7 mil habitantes quando, numa noite silenciosa de 26 de abril de 1937 (exatos 80 anos), ouviu o roncar dos aviões da Legião Condor (Alemanha) e militares do Corpo Truppe Volountarie (Itália) se aproximarem, carregando quilos e quilos de bombas e munição na ponta dos fuzis.

Uma rua de Guernica, cidade basca impiedosamente bombardeada e metralhada em abril de 1937, ainda no segundo ano de guerra. Falam-se em 160 mortos para uma conta que pode ter muito mais. A consternação internacional chegou aos ouvidos de Picasso, que fez da tristeza uma obra de arte e aletra aos horrores do fascismo e das ditaduras (Reprodução)

Foi um massacre geral. Centenas de mortos (falam-se em 160), corpos despedaçados por todos os lados, misturando-se aos escombros das construções. Tudo isto num ataque que, segundo consta a história, serviu meramente para exercício de teste e experiência dos pilotos alemães.

Em miúdos, os nazistas já se aqueciam para os conflitos que tornariam a ser a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1939, mesmo ano do fim da guerra civil, vencida por Franco. Era o teste que Hitler precisava para saber se tinha capacidade de invadir a Polônia, como posteriormente faria.

Ou seja: em Guernica, morreram inocentes em nome de um teste.

Mas a arte, como em tantos momentos, costuma incorporar aquele cidadão que agora dar aquela indireta bem direta no que está errado. No mesmo ano, tomado pela consternação internacional que o episódio tomou, Picasso pincelou um dos mais icônicos retratos artísticos de todos os tempos. Ele residia na França e havia sido convidado pelo governo espanhol para fazer um painel que estaria exposto no pavilhão espanhol na Expo 1937, em Paris.

Picasso em seu ateliê em Antibes, França. Pintor já tinha planos para um mural que ilustraria o pavilhão espanhol na Expo 1937, em Paris. Não demorou para mudar de ideia e pintar Guernica, concluída em dois meses e que chocou quem a viu no pavilhão (abaixo), tanto pelos simbolismo quanto pela sua mensagem. (Reprodução)

Não foi difícil para Picasso mudar de ideia depois do que aconteceu naquela cidadezinha basca. Em dois meses apenas nasceu Guernica, cercada de simbolismos, de metáforas, de sofrimento. Foi escolhido um tom acinzentado, sem brilho, incorporando-se a corpos e rostos deformados, várias cenas chocantes e um tanto enigmáticas. Não é a toa que, ate hoje, a obra torce os crânios de críticos e historiadores da arte.

Referencias a paixão de Cristo, o Apocalipse, ao regime de Franco, a mínima esperança simbolizada num galhinho de oliva, tudo estava as claras em real preto-branco-cinza. Claro que os republicanos não gostaram, esperando algo bem mais favorável a sua causa. E não foi surpresa que Franco proibisse a posse de qualquer cópia de Guernica dentro do solo espanhol. Até 1981, quando ficou sob a guarda do Museu de Arte Moderna de Nova York, Guernica não voltou à Espanha.

Foram mais de 20 anos assistindo de longe as transformações da nação ibérica ao longo do tempo. Franco, que havia simpatizado com republicas democráticas e gozava de certo prestigio mundial controverso, morreu em 1975, abrindo caminho para a liberdade e para a restauração da monarquia espanhola, sob o reinado do filho de Afonso XII, Juan Carlos. Uma antiga promessa de Franco ao deposto rei durante a guerra.

A Rainha Sofia (de amarelo), esposa do Rei Juan Carlos, observa o mural no acervo que leva seu nome, em Madri. Foram mais de 20 anos até a obra poder retornar a Espanha, vinda do Museu de Arte Moderna de Nova York, donde ficou guardada até 1981 (EFE / Fernando Alvarado)

A Espanha de outrora, vivendo bons dias e assustada com ataques de grupos separatistas como o ETA, do País Basco (onde situava-se Guernica), vencedora de um Eurovisão em 1968 e um dos destinos favoritos do mundo também perdia Picasso, morto em 1973. A saúde frágil não impedia-o de continuar pintando e encantando. Tinha sido o primeiro artista a expor em vida no Museu do Louvre, em Paris, onde muito viveu e também faleceu.

Só mesmo em 1981, Guernica voltou à Espanha, agora inserido no acervo do Museu Raínha Sofia, em Madri. Um reflexo constante do que o fascismo pode ser capaz de fazer para conquistar seus tentos inconfessáveis. A ousadia de Picasso que desafiou um regime e questiona, até hoje, os autores de carnificinas pelo mundo em nome de interesses espúrios.

Esta é Guernica, uma obra nascida da tristeza e transformada em um sinal de alerta permanente para um mundo sempre tenso e instável.

1 comentário em “Guernica, 80: Da guerra para a arte”

  1. André, seu legado de memorialista e de pesquisador já é uma constatação importante.
    Para nossa cidade, você mostra sempre fatos atuais e de reflexão dos acontecimentos passados. Com isso você nos trás a mente que precisamos saber do passado, para entender o presente e preparar um futuro melhor. A segunda grande Guerra mundial é um fato desse, lembrar, entender e refletir o que podemos melhorar. Precisamos melhorar o cidadão, acabar com as indústrias da guerra. O pato donald e o coreano do norte que o digam, não aprenderam com as barbáries das guerras. Ambos precisam de tratamento, ser afastados da sociedade.
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

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