Era uma linda manha de domingo, 3 de setembro de 1967, na simpática Suécia, um dos países que compõe a tão exemplar península escandinava, na Europa. Tinha tudo para ser um dia normal, com frio, trabalho e gente pelas ruas, avenidas e calçadas indo em busca de seu trabalho, escola, o que fosse. Dia bem sueco, com os suecos fazendo coisas de suecos, normalíssimo.
Mas, seria normal mesmo se ruas, avenidas, vielas, pontes e qualquer trecho trafegável do trânsito das cidades do país estivessem literalmente sem um único veículo na pista. Nas vias, operários a todo vapor revelavam placas por detrás de plásticos, pintavam faixas, davam os últimos retoques em cruzamentos e alças de acesso novinhas em folha e se preparavam para uma data história e, ao mesmo tempo, inusitada.
No mesmo dia, milhares de motoristas entortavam os neurônios imersos no seu primeiro contato com uma nova forma de percorrer o caminho para casa ou para o trabalho. Estavam escritos assim os primeiros capítulos do que é conhecido até hoje como o Dagen H ou Dia H, ou ainda o dia da mudança de tráfego para a direita (Högertrafikomläggningen), que, apesar da confusão preliminar ajudaria os suecos a marcarem o nome do país como uma das referencias em trânsito seguro no mundo.
O texto que os amigos leem, tirando as edições, foi escrito pel’A BOINA em 2014, ainda para o portal Farol Blumenau, e resolvi resgata-lo este ano como lembrança (mesmo passados três meses) dos 50 anos da mudança que ainda é vista com uma certa dose de curiosidade e questionamento por muita gente. Afinal, como que, da noite para o dia, a Suécia simplesmente trocou a mão de direção, superou os problemas e hoje é um marco em matéria de segurança e respeito as leis de tráfego?
Impopular, esquisita… mas necessária
Para entender esta curiosa história voltamos aos anos antes de 1967. Uma época até hoje lembrada com certa nostalgia por muitos suecos, mas pedia uma revolução total no trânsito de praticamente todo o país. Até o Dagen H, a Suécia adotava, assim como a Inglaterra, a Austrália e outros países, o tráfego pelo lado esquerdo – left hand drive (LHD) ou a mão inglesa. No entanto, praticamente todos os veículos fabricados no país já tinham o volante do lado esquerdo – ou mão francesa – e dirigir nesta configuração nas numerosas estradas de pista simples suecas um risco quase calculado, potencializando ainda mais a possibilidade de uma colisão frontal por problemas de visibilidade.
Além deste argumento, outro ponto problemático era a diferença de sentido de tráfego com os países vizinhos. Das nações escandinavas, apenas a Suécia ainda guiava no lado esquerdo, o que trazia confusão aos que cruzavam a fronteira para a Finlândia ou para a Noruega, países fronteiriços que usavam a mão francesa no encontro das estradas de passagem por estes países.
Apesar de dois fortes pontos favoráveis a mudança de direção, a população era contra a mudança, que fora rechaçada várias vezes em diversos referendos e consultas públicas nos 40 anos anteriores a mudança. Mesmo com 83% dos suecos contrários a alteração do trafego, segundo o último censo, em 1955, o Riksdag (parlamento sueco) seria o responsável pela cartada final na intransigência popular. Em 1963, a proposta de mudança do sentido do trânsito foi aprovada, juntamente com a criação dos primeiros mecanismos de estudo, divulgação e reeducação dos motoristas, com o auxilio de psicólogos.
Até 1967, a Suécia empreendeu uma verdadeira batalha estrutural e psicológica nas cidades e na cabeça dos motoristas. Mesmo ainda impopular, a troca de direção foi sendo constantemente lembrada por meio de uma massiva campanha de divulgação que incluiu até mesmo um concurso em busca de um tema musical para as ações, tendo como vencedora a canção Håll dig till höger, Svensson (‘Mantenha-se à direita, Svensson’), executada pelo cantor Boris, juntamente com a banda The Telstars.
Conforme o Dagen H se aproximava, cruzamentos novos em folha eram inaugurados, novas placas de sinalização eram colocadas e envoltas em plástico preto. Depois de tanto trabalho – estrutural, publicitário e psicológico – chegava o tão aguardado dia 3 de setembro de 1967, era o Dagen H, e um misto de expectativa e imprevisibilidade rondava as grandes cidades da Suécia.
3 de setembro – Dia e hora de mudar de lado
Na manhã do Dagen H, todo o tráfego da Suécia deveria parar no período que iria da 1h às 6h, a exceção apenas de carros de serviço e outros veículos que tinham autorização especial para circular. Em Estocolmo e Malmö, o período de bloqueio do tráfego foi maior que em todo o país, ocorrendo entre as 10h de sábado até as 15h de domingo. O objetivo desta pausa servia para os grupos de trabalhadores reconfigurar alças de acesso e cruzamentos, além de efetuarem as pinturas nas pistas e revelar as novas placas de trânsito recém-colocadas em pontos estratégicos.
Na segunda-feira seguinte ao Dagen H, a cena era de completo pandemônio nas ruas suecas, mas nada do que meras quatro horas de reprogramação dos cérebros de centenas de motoristas que, conforme o horário estipulado pelo governo sueco, trocariam de pista, passando do lado esquerdo para o direito. Nos primeiros dias, eram inevitáveis cenas como de motoristas cruzando erroneamente vias ou entrado em ruas pelo lado contrário. Mas nada que o tempo, e apenas ele, fosse fazendo o trabalho de ajustar o motorista sueco a nova realidade do tráfego em seu país.
Outras duas mudanças em especial foram, sem dúvida, os maiores encargos financeiros da Suécia durante os procedimentos do Dagen H. A primeira era com relação aos faróis dos automóveis, que precisaram ser trocados por novos, calibrados para o tráfego na direita e que evitavam o ofuscamento dos condutores no novo sentido. Alguns, que não poderam fazer a troca, colocavam um adesivo na lateral para apartar o feixe de luz quando acesos.
A outra, sendo a mais cara de todo o esquema de alteração, foi com relação ao transporte coletivo. Cerca de 9 mil ônibus foram adquiridos ou adaptados com a porta para o lado direito. Uma parte da frota antiga foi vendida a países africanos e outros de mão inglesa. Além disso, o serviço de bondes na maioria das cidades suecas foi desativado, permanecendo em funcionamento apenas nas cidades de Gotemburgo e Norrkopping até os dias de hoje.
Os reflexos: Da curiosidade a referência
Com o passar do tempo, as mudanças começaram a fazer efeito para o futuro do trânsito na Suécia. Os índices de acidentes no país, altos nos primeiros meses da mudança, baixaram consideravelmente a números até abaixo dos registrados no período anterior a 1967. Segundo especialistas, um dos responsáveis por estas estatísticas positivas, além da visibilidade, foi uma espécie de concentração forçada, já que para se adaptar a nova mão de direção, o motorista sueco passou a guiar mais cautelosamente e mais concentrado procurando adaptar-se a nova condição.
Também com o passar dos anos e graças a iniciativas no campo da segurança veicular (um dos países mais seguros para se dirigir no mundo), a Suécia foi conquistando o posto de referencia em direção segura. Em 1997, 30 anos após o Dagen H, os suecos entraram definitivamente na vanguarda da luta contra as mortes no trânsito com a criação do programa Visão Zero, que busca zerar por completo as estatísticas.
Passados 20 anos do lançamento do projeto, que tem lá uma visão utópica mas necessária, os frutos continuam sendo mais que positivos. Segundo o site-estatística Roads Kill, a estatística da Suécia chega a três mortes para cada 100 mil habitantes, sendo que só no nas mortes envolvendo pedestres registrou-se uma queda quase pela metade desde 2012. Para quem curte bicicletas, outro dado interessante envolve as mortes de crianças em bicicletas, que não são registradas desde 2008! E se você acha que ainda é muito, no Brasil são registradas cerca de 23 mortes no trânsito para cada 100 mil habitantes, segundo o mesmo site. Diferença gritante, não?
Investimentos em veículos mais seguros, tendo como exemplo maior os automóveis da Volvo como o XC90, somaram-se ao planejamento de vias exclusivas para pedestres, estradas com ênfase na segurança e prioridade a novos meios de locomoção alternativos. Os resultados tem sido extremamente positivos e servidos como molde até então até mesmo para os vizinhos de Escandinávia.
Chegando a 2017, a Suécia continua como modelo mais do que exemplar na busca por um trânsito mais seguro, democrático e prazeroso para quem precisa, seja de locomoção para o lazer ou para o trabalho. Uma peregrinação paciente que começou com um ato ousado, impopular, mas que passadas cinco décadas, coloca esta simpática nação em uma posição de excelência nas estradas.
Quer exemplo de planejamento melhor para o trânsito? Pergunte a um sueco, pois para eles, exemplos não faltam. E tudo começou com uma curiosa mudança para a direita.