Hoje, pela internet, se fala tanto em religião como instrumento de política e ódio. Uma distorção levada a cabo num Brasil cada vez mais destruído por uma divisão ignorante e acéfala. E de fato, a religião, em muitos momentos da história, teve sua parte como divisor de nações, motivador de guerras e causador de revoluções, para o bem ou para o mal.
Neste caso de três décadas atrás, a religião foi o estopim para aquela que seria a mais sangrenta revolta contra o comunismo que varreu o leste europeu no fim dos anos 1980. Encravada na península dos Bálcãs, tendo ex-ditaduras comunistas como Hungria e Bulgária e ex-membros da URSS, como Moldávia e Ucrânia, a Romênia precisou de sangue e nervos para se livrar de um regime sanguinário, autocrático e corrupto. E mesmo que todos os seus problemas não tenham sumido depois deste evento, a sua população celebra, entre seus vultos e monumentos históricos, o que foi um grito da liberdade, mesmo entre balas.
Um país cuja história passa pelos contos do conde Drácula e as lendas vampirescas da Transilvânia, berço da lenda da ginástica artística Nadia Comameci e de jogadores de futebol conhecidos pela boa bola nos pés e seus cabelos louros, a Romênia não desfruta, fora deste teatro, de momentos muito pacíficos.
A qualidade de vida do país tem melhorado sobretudo graças a evolução de sua indústria elétrica e automobilística (os Duster, Logan e e Sandero fabricados pela Renault brasileira são, originalmente, projetos da Dácia, montadora romena), mas as desigualdades ainda são sombra do período em que um homem e uma mulher pareciam ter o poder vida e morte sobre seu povo: Nicolae e Elena Ceausecu.
Nicolae foi o sucessor do então poderoso Gheorghe Gheorghiu-Dej, uma das mais destacadas lideranças comunistas do país e que esteve nos movimentos que arrastaram a Romênia para o socialismo no fim da Segunda Guerra. Era um período onde os países do leste europeu ainda viviam no tênue equilibrismo na linha da espada: obedecer as ordens de Moscou ou ser subjugado pelo poderio de Stalin.
A Romênia seguiu em frente. Reconhecido o mínimo, o governo comunista consolidou-se, tendo Gheorghiu-Dej como seu líder até 1965, quando faleceu. Nicolae entra em cena justamente nesta época, mas sua participação nas agitações comunistas já vinha de longe. O sapateiro-remendão que virou revoltoso na capital romena agora era o líder de uma nação ainda perdida, confusa e atordoada no regime que se encontrava, mas que ganhava prestígios como o governante que condenou a invasão a Checoslováquia durante a Primavera de Praga, em 1968.
A propagada do regime dava conta que o país crescia pela força de seus trabalhadores enquanto cultivava-se sua imagem como líder irretocável, o “gênio cárpato” como adorava ser chamado, numa clara inspiração no culto à personalidade norte-coreano. Ao mesmo tempo, Elena era o apoio favorito do marido-ditador, com poder de vida e morte sobre as vítimas da repressão. Tudo era vigiado, anotado, espionado, controlado, sem reservas, sem escrúpulos.
Mas neste mesmo passo, a ditadura perdia-se no seu sapateado. Vivendo abaixo de empréstimos impagáveis e controlada por uma política de terror violenta a cargo da Securitate (a polícia política), o regime dos Ceausescu mantinha-se regado aos luxos proibidos aos operários da nação, adotando medidas um tanto inusitadas para manter o povo a seu controle, como uma lei que retirava as máquinas de escrever da circulação e das casas. Bisonho? Mas para o governo, eficaz.
A situação incontrolável de um país em ruínas sem que as mesmas fossem notadas pareciam passar despercebidas no que a Romênia mostrava ao mundo, pelo menos ao mundo comunista: uma nação pujante que tinha no monstruoso palácio de governo de Bucareste, a capital, o símbolo desta força hipotética.
O barril ia estourar, cedo ou tarde. Nicolae e Elena, intocáveis como “mestres da nação” e analfabetos por natureza não perceberam o furacão que varria o leste europeu desde as movimentações na Polônia em meados dos anos 1980. Em 1989, o comunismo europeu praticamente era uma sombra e, para se ter uma ideia, no mesmo ano, a Alemanha Oriental assinava seu próprio atestado de óbito com a queda do muro de Berlim.
E, no panorama do mapa europeu, quem resistia atrás da cortina sem querer admitir era a combalida Romênia, que ao chegar em dezembro daquele ano, parecia andar de muletas propositalmente sem mesmo nunca ter precisado delas. E a religião, esta tão controversa em muitas situações políticas, foi o fogo no pavio necessário. Uma tentativa de extradição de um sacerdote húngaro em Timisoara, cidade no interior do país, foi o motivo de uma revolta contra o governo que praticamente ecoou no país inteiro.
Nicolae e Elena corriam perigo, mas cegos a revolta que se abril em 17 de dezembro, se apegaram ao poder de que “levantamos a mão e tudo para”. Ledo engano, já que as manifestações se ampliavam. O exercito, inicialmente ao lado do governo, mudou de lado talvez vingando-se da falta de prestigio em benefício da bem equipada Securitate, que nos movimentos seguintes, agarrou-se na ditadura que a criou e começou o banho de sangue efetivo contra a população.
Ao chegar em Bucareste, as manifestações atingiram o ápice em 21 de dezembro, onde Nicolae e Elena, numa tentativa desesperada, reuniram uma claque diante do palácio do governo para aplaudir uma oferta de aumento de salário. Em vão, a revolução tomava conta do país, inclusive da emissora de TV oficial, que passou a ser o arauto das mudanças que sacudiam o país, inclusive da execução do casal por um tribunal militar no dia de natal.
Dia de natal que trouxe várias surpresas. Os romenos, cuja vida era extensivamente controlada, não tinham nem o direito de celebrar o natal. Uma árvore natalina era um simbolo de subversão violenta ao regime, a missa do galo uma verdadeira reunião de opositores conspirando contra o poder de Nicolae. Tudo isto tinha acabo sem volta.
Tudo acontecido em uma noite de natal na Romênia, Onde a sanidade comunista de um casal foi derrotada pela resistência de um religioso. E onde o estopim vindo de uma igreja explodiu a revolução mais necessária (e sangrenta) da cortina de ferro.