História: o constante quebra-cabeças que muitos tentam montar para recontar um passado e, dele, tirar as mais variadas visões, recordações e aprendizados. Testemunhos, objetos, fotos, documentos, tudo sempre vale para remontar o passado, entender costumes e processos antigos, assimilar passagens para não mais repeti-las ou dar aos seus realizadores as palmas merecidas.
Neste tempo todo que pesquiso e falo de história de Blumenau, sempre meu alvo maior de estudo e curiosidade, foi possível provocar todas estas sensações e outras mais que poderíamos contar e recontar aqui várias vezes. Já sentimos espanto, boas surpresas, gratas descobertas e causamos até mesmo a discordância de quem pensa que estamos “reescrevendo o passado”, quando na verdade o desenterramos das formas mais inusitadas.
E quando falo no plural, não me coloco sozinho nessa tarefa. Lá em 2015, tutelado pelo saudoso Adalberto Day, comecei a traduzir o passado e juntar este quebra-cabeça da forma mais simples e direta à todos. O que produzi e pesquisei, ficou de referencia, ainda conta a história, abre caminhos para outras vertentes e, felizmente, resgata o que tanto já perdemos nesta cidade abaixo do fogo, do esquecimento e das enchentes.
Falo da profa. Sueli e o Arquivo Histórico, do sempre parceiro Henrique Martins (Blumenau Antiga), do atrevido xará André Cantoni (Blumencast), dos veteranos do Antigamente em Blumenau e de tantos mais que seguem comigo nesse rumo, sempre se surpreendendo com o que encontram. E a cada encontro, uma surpresa gratificante, como a que eu tive há algum tempo e que talvez prove essa vocação adquirida com o passar dos anos de garimpar nossa memória, mesmo que do jeito mais inusitado.
Foi em novembro de 2023, quando atrás de conteúdo para o especial “1 História em 1 Minuto (Ou Mais)“, que toco no Instagram junto do Blumenau Antiga, que encontrei um pedacinho de Blumenau perdido numa prateleira do famoso Mercado de Pulgas de Brusque. Entre tantas antiguidades expostas à venda por lá, a procura de pauta me fez cair numa lata de café. E não podia pensar que isto renderia uma aventura de fazer sorrir qualquer entusiasta da história e de uma tradicional família de nosso meio empresarial: os Bernardes.
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Rosangela Pereira, nossa polivalente comercial-prodígio da União FM foi a testemunha dessa loucura: nas minhas mãos, uma lata do tradicional Café Cometa, que já ouvira tanto falar entre comentários de antigos e de fotos e documentos lidos por alto em sites sobre Blumenau. Na embalagem da lata, o testemunho flagrante: “Arno Bernardes Indústria e Comércio”, com endereço à Rua São Paulo, 600, hoje bem de frente com a Funerária Haas, se formos pela localização atual.
Tinha coisa que não encaixava naquela lata: até onde minhas leituras tinham ido, o Café Cometa era produzido por Walter Schmidt, que entre 1910 e 1931 operava a torrefação de café junto da pequena fabriqueta eletromecânica que, mais tarde, daria corpo a loja tradicional na Rua XV e a Waltec, no Passo Manso. Como que Arno Bernardes faria parte deste esquema em si?
Imaginava pragmaticamente que, talvez, nunca soubesse. O vídeo foi ao ar no Instagram ainda naquele sábado de novembro, mas não demoraria para que a resposta chegasse ao meu colo, e da forma mais surpreendente. Uma mensagem despretensiosa via o Whatsapp da União FM me fez cair da cadeira, e quase que eu a ignoro: tratava-se da secretária do sr. Arno Bernardes Filho, um dos superiores da Arber, junto da irmã, a amável Adelina. As coisas começavam a se ligar uma a outra.
Daquele primeiro contato às conversas com o Sr. Arno foi um pulo, e ai que o quebra-cabeças se ligou de vez: o pai de Arno foi quem assumiu a torrefação de café de Walter Schmidt até meados dos anos 1950, quando ele se voltou totalmente ao setor metalomecânico. A Arber que conhecemos hoje, marca tradicionalíssima no setor de parafusos e fixadores, é a continuadora daquele primeiro empurrão torrando o tradicional Café Cometa.
Que golaço! Os olhos envidraçados da Rosangela cintilaram quando soube da ligação de uma coisa com a outra, e o pedido de Arno Filho foi simples: “seria possível resgatar aquela lata?” A família não tinha recordações deste pedaço da história do patriarca, e como pesquisador acabei matando no peito uma missão familiar que significava muito, para eles e para a cena empresarial da cidade. Recuperar aquela lata era o objetivo.
É nessa parte da saga que tenho que levantar mãos ao céu e agradecer um grande amigo: Vilmar Araldi. O dono da festa de Brusque, tão empolgado com antiguidades quanto eu e que, ao saber do pedido, não mediu esforços para encontrar o expositor, de nome Evandro (que ainda não o encontrei para agradece-lo em pessoa!), e lhe pedir a lata para cumprirmos a missão. Ela veio de graça de Brusque para o pátio da Matriz São Pedro Apóstolo, em Gaspar. Ela chegou envernizada pelo próprio Vilmar (para preservar as características originais) e comigo partiu para Blumenau, pronta para voltar ao filho como um pedaço da inspiração do saudoso pai.
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Vilmar soube o bem que ele fez, e com certeza estava sorrindo comigo e com a Rosangela quando, em dezembro, a lata chegou as mãos da família. Uma recepção que nos levou a emoção profunda, sem exagerar. Não era uma vitória apenas, mas a alegria visível nos olhos de Arno e Adelina ao ver, diante deles, um pedacinho da memória da própria família, do tino empreendedor do pai, nas mãos, conservado e, agora, fazendo parte do relicário deles próprios, prova de reverencia e incentivo para mais dias de sucesso da própria Arber que o torrefador de café começara em 1955.
Alguns até me perguntaram, com certa dúvida: “por que não doar ao Arquivo Histórico?” Acho que não cabem explicações e motivos que nos levem a justificar o porquê do artefato ir de encontro a família. Aqui entram questões profundas, de saudade, recordações, inspiração, a percepção de onde uma empresa começou e, ao olhar em volta, ver onde ela está. São tantos valores pessoais e intrínsecos que não valem para responder, apenas cumprir a meta e faze-la chegar a família que continua esta trajetória explica que a história segue seu curso, olhando ao passado para firmar-se no presente.
Hoje, a lata está lá, repousando e inspirando os irmãos Bernardes no seu cotidiano. É um pedaço de história da família, da empresa, da nossa cidade. Tão pequeno, mas tão importante que mereceu um resgate com cara de aventura. Tomara que eu e meus pares encontremos histórias tão valiosas quanto esta no futuro. Blumenau merece que a memória seja recontada com lances dessa natureza: que nos inspiram, surpreendem, abrem sorrisos e criam laços do passado pioneiro com o futuro promissor.
E vamos a próxima história! Ela ainda será recontada. Me aguardem!