Aquele era um domingo de sol, céu bonito, convidativo para um passeio vespertino no pós-almoço sempre farto nas mesas, como de costume.
O guri polia as rodas cromadas do Fusca do pai. As moças curtiam derretidas o chiado romântico do som de Dave Maclean no eletrofone Philips. A tarde prometia um soirée no Caça-e-Tiro, onde muitas histórias românticas começaram.
Tudo calmo. O relógio imponente da grande fábrica batia compassadamente diante de uma rua que só teve o silêncio solene do dia interrompido por roncos de dois tratores de esteira da Construtora Triangulo, em um curioso e historicamente mórbido dia de trabalho extra.
Diante dos tratores, uma praça esportiva calada, talvez perguntando-se no íntimo inanimado de suas curvas onde estavam os jovens, adultos e velhos que a ocupavam naquelas tardes, seja de lazer ou dos gritos ensurdecedores de uma partida de futebol.
O filme mental avança cinco décadas a frente: o corre-corre de pessoas, carros, ônibus lotados. O local que estou parado é a curva que, estranhamente, limita as ruas Progresso e Da Glória. Uma curiosa divisa de vias urbanas e bairros separadas por um vazio de pedra há tanto tempo, numa metamorfose quase esquecida no frenético passar dos dias.
O tão falado Reino do Garcia, este traduzido comicamente nas tiradas do Sargento Junkes, o distrito de poucos 20 e tantos anos que congrega cinco bairros e guarda grandes passagens da memória blumenauense desde a concepção da capital da cerveja.
O mais populoso, cheio de maneirismos, de gente que revestiu-se de bairrista quando aquele rincão ganhou sua bandeira, ainda que fictícia, mas rótulo de um lugar que, vez em quando, sente-se tão simplesmente uma parte dentro do todo blumenauense. Movimento lógico? Um morador do Garcia – independente do bairro – sempre encontra outro “compatriota do Reino” em qualquer parte, basta cinco segundos de assunto.
Este Garcia tão grande e tão diferente do que as memórias que, silenciosamente, repousam em alguma prateleira do saudoso Adalberto Day, mentor deste escriba no recontar da história. Um lugar que, aos olhares mais atentos ao “antigamente”, ainda fecham-se numa viagem temporal em que não havia Reino, Distrito, eram apenas cinco bairros, e todos eles em volta de sua grande área fabril.
A obra de três empreendedores dos tempos da lenha e do machado: Johann Henrich Grevsmuhl, August Sandner, Johann Gauche e um tecelão conhecido por Lipmann. Era 1868, faltavam 12 longos anos para a obra dos irmãos Hering quando os teares arcaicos da Empresa Industrial Garcia (EIG) já rodavam.
A legitima pioneira têxtil de Blumenau tão rabiscada em livros de história nascera entre tropeços. Idas e vindas, falências e soerguimentos, e a EIG solidificou-se. O nome histórico era tomado emprestado da região de onde originava-se a primeira família residente naquelas léguas: do Rio Garcia, na distante Camboriú.
Ao redor dela, uma comunidade formava mais um de tantos círculos proletários do Brasil antigo, onde vivia junta e torcia para as mesmas coisas. Alguns daqueles com bola de capotão no pé foram além dos papos e várzeas de fim de semana para correr aos campos e assombrar a cidade sob o nome do maior rio do Brasil: o Amazonas.
“Anilado”, “alvi-celeste”, protagonista dos grandes embates das tardes contra os ditos “primos ricos”: Palmeiras e Olímpico. Em torno do estádio, joia do esporte catarinense dita orgulhosamente pelos mais saudosos, uma multidão com sangue azul-e-branco nos olhos. Dias de vitórias, poucos de derrotas, muitos de diversão dos primórdios do nobre esporte bretão.
Era o estádio também o ponto do grande encontro social. Dos eventos cívicos ou, simplesmente, aquele momento tranquilo do “footing”, da azaração inocente de jovens descobrindo o amor. O sossegado fim de dia, da na semana idilicamente agitada ou no tranquilo sábado de sol, o repouso e a paz no sul trigueiro de uma cidade em constante ebulição.
O progresso, aquele que lá estava chegando vigorosamente, permitiu-se dar espaço a mais uma família. O visionário Theóphilo Zadrozny entregava sorridente as chaves da porta da frente do galpão que levantara ao veterano Otto Huber.
Ao lado do velho barco a vela da combalida vizinha, encostara um despretensioso cavalo-marinho. A dita Fábrica de Artefatos Têxteis, escrita “Artex”, era estampada frondosamente no alto da entrada do prédio pioneiro. Estamos em 1936.
O auge: duas legendas têxteis, um clube de futebol feito esquadrão citadino, uma comunidade que dava as mãos nas festas, nas tragédias e nos movimentos que faziam gerações se encontrar em estradas pouco a pouco revestidas em pedra na dita marcha do progresso representado em carros cintilantes, bens de consumo moderníssimos, sem que o sol perdesse sua poesia e brisa tranquila.
As histórias dos velhos avolumam-se entre os causos e vesperais inesquecíveis. O casal que anda de mãos dadas num daqueles encontros supostamente comportados enquanto um bar de esquina reunia a turma da semana, aqueles que mantinham os teares funcionando e as toalhas saindo, esvoaçantes, para mais um banho ou cama perdidos em um país sem-fim.
E aquele mundo mudou muito. Muito até demais. As mãos dadas das duas praças fabris era a visão fria, mas necessária para uma sobrevivência diante de números e gráficos. Os tempos modernos e a política de um cidadão corpulento na capital federal exigiam. Se assim era necessário ou imposto, assim se fez.
Longe dos olhos de blumenauenses do sul, as conversas de homens alinhadamente engravatados selaram um destino: a incorporação. A EIG, pioneira e congregadora, seria mero rótulo dentro de uma Artex agigantada.
Os saudosos se agarram nas velas do barquinho em gritos contra, mas quem pode contra? Nem uma folha de amor e prosa consegue parar estes desígnios tomados em papeis frios e goles de drinques. Logo, nada mais seria como aqueles conheceram no passado recém-chegado.
Era 1974, a Rua Amazonas começa a ser desviada. A Praça Getúlio Vargas era movida para um novo local, corriqueiros traços até hoje vistos sem grande relevância por olhos fadigados do cotidiano e que explicam o vazio deste escriba diante da curva entre duas ruas: ali, onde carros e pessoas convergem a direita ou esquerda, havia algo de um passado distante.
O tal falado e justificado progresso chegou, rápido e precisando de espaços, de retas outrora ruas cálidas e dos lugares ocupados por tão típicas casas de uma vila operária que ali não mais cabia. Era tudo veloz, agoniado, e o grito de “com licença” chegava quase que premeditadamente ao campo de futebol.
O anilado contava seus dias como ainda contava seus gols e glórias. Era capaz de reunir um esquadrão que sonhava em voos altos, mas que lamentavelmente não passariam de sonhos impossíveis ante aos dois tratores que ainda aguardavam o momento de começar o sepultamento. Incontáveis gols, gritos de vitória e a saudável zombaria aos “primos ricos”.
Beto, em um vento calmo, recorda “dos gols de bicicleta do Filipinho, daquele gol de calcanhar que o Dico fez contra o Palmeiras, das arrancadas fulminantes do Meyer que quase sempre se transformavam-se em gols”, Pessoas e momentos que recheariam outras linhas, guardadas entre escritos futuros.
Mas estamos, em memória, em 26 de maio de 1974. A bandeira do Amazonas não estava mais lá, nem os troféus, nem camisas, nem quase nada mais do outrora glorioso anilado. Torcedores apaixonados, revoltados e de coração azul ferido, invadiram a sede e levaram o que podiam, numa cruzada raivosa, num último grito contra o apagar do passado em nome dos ditos “novos tempos”.
As máquinas da Triângulo aumentam o giro, e enquanto a vida corre naquele domingo calmo, rasga-se a terra preparando-a para apagar o que restou da calidez de um Reino que nunca existiu.
O futebol que ali rolou era só um símbolo dentre tantos de histórias que os antigos guardam em baús de relíquias, fotos, contos resgatados em memória que hoje, sem querer, deixam lágrimas caírem inocentes.
A camisa anilada, o barquinho a vela, a reta permeada das casas da vila operária, o caminhar tranquilo no calçamento fresco, venda de secos e molhados, as marchas em busca do Rei e as procissões religiosas.
Rua 12 de Outubro, o tapume e o cinema no Hinkeldey. O heróico Helmuth Leindecker, o Frei João Maria e as vigilantes rondas nos corredores do Colégio São José (Celso Ramos). A Schwester Marta, os Hort do Caça-e-Tiro, o Bepi, o velho Alfarth, o Max Klabunde, o tafoneiro João Heiden, o Lothar e o bar do Schmidt. Os bailes do Erinho & Sua Orquestra, a EIG e o Amazonas…
Um Reino hipotético, que não teve tempo de existir e que só memórias antigas e fotos amareladas guardam consigo. Naquela curva, entre o Progresso e a Glória, eu sigo caminhando os caminhos destes e de tantos outros.
Este Reino do Garcia mudou muito. E já se vão 50 anos…
E seguimos.
Que linda história. Vai para a minha biblioteca “Memórias da História do meu Tempo”
Sinto um frio na alma.Tudo saudoso…triste…verdadeiro…o que fazer? Relembrar o que foi bom…bonito..maravilhoso e aceitar a triste realidaew