Um navio a vapor bate numa superfície, racha o casco e naufraga, matando grande parte dos passageiros. É um roteiro conhecido de um clássico das tragédias marítimas que é o Titanic. O acidente com o transatlântico máximo da White Star Line em 1912 deixou margens para aventuras subaquáticas, histórias e encantamentos que viraram um sem-número de filmes. Não é raro que catástrofes marítimas pelo mundo sejam sempre comparadas ao que acontecera com o navio irlandês que foi a pique matando mais de 1500 passageiros naquele início de século.
Quatro anos depois, o roteiro se repete, em escala menor, na costa brasileira. Um navio a vapor bate em uma superfície e naufraga, matando quase todos os passageiros. Neste caso, a história é ilustrada tristemente pelo transatlântico Príncipe de Astúrias, navio de bandeira espanhola que em 5 de março de 1916 ia a pique na que é considerada até hoje a maior tragédia marítima brasileira de todos os tempos, e que completou no último sábado (05/03) 100 anos de mistério e história.
Origem espanhola, sangue escocês
O navio era um dos orgulhos da frota da Pinillos Y Yzquierdo Y Cia, armadora catalã fundada por Miguel Martinez de Pinillos Y Izquierdo em 1884. e controlada naquela época, pelo filho, Antônio. O nascimento do Príncipe de Astúrias foi por conta do aumento da demanda de viagens para o Brasil e a bacia do Rio da Prata, na Argentina, muito populares naquele momento. O Príncipe, juntamente com o transatlântico Infanta Isabel foram construídos pelos estaleiros J. Scott Russell & Co., de Glasgow (Escócia), e lançados ao mar em 1913 e 1911, respectivamente.
Para um transatlântico de sua classe, o Príncipe de Astúrias era ricamente mobiliado e o navio era um dos tantos prestigiados que a Espanha tinha na frota, especialmente por conta da neutralidade do país durante a Primeira Guerra Mundial, o que permitia que as embarcações daquele país continuassem os trabalhos de transporte e cruzeiro para América Latina sem empecilhos.
Era uma rota que durava 30 dias, com partida de Barcelona marcada a cada dia 17 de cada mês. As escalas do navio eram em Cadiz e Las Palmas, na Espanha, partindo depois para as Ilhas Canárias e seguindo para o Rio de Janeiro e Santos, já no Brasil. De lá, o Príncipe partia para Montevidéu, no Uruguai, e terminava a rota em Buenos Aires, capital argentina.
Na derradeira viagem estavam a bordo, entre passageiros e tripulantes, 578 pessoas, mas contam-se versões que o Príncipe de Astúrias transportava naquele dia mais de 800 imigrantes clandestinos fugidos da Primeira Guerra na Europa. Além de toda esta carga humana, o navio transportava uma grande quantidade de metais, vinho português e 12 estátuas de bronze, que seguiam viagem para a Argentina. As obras compunham o monumento La Carta Magna y Las Cuatro Regiones Argentinas, que seriam instaladas nos Bosques de Palermo, no centro de Buenos Aires.
A tragédia
Eram 4h20 da madrugada quente dos trópicos de segunda-feira quando o Príncipe de Astúrias se aproximava da costa brasileira. A maioria dos passageiros já dormia, mas no luxuoso salão de festas a orquestra, animadíssima, tocava um repertório sem fim de marchas de carnaval. Naquela hora, um relâmpago forte iluminou a redondeza e revelou o perigo a tripulação: O navio encontrava-se muito próximo dos rochedos da Ponta da Pirabura, na costa de Ilhabela, em São Paulo.
Apesar de todo o esforço para colocar o navio em marcha à ré, tal como o Titanic, o choque com as rochas foi inevitável e abriu uma enorme fenda na lateral do Príncipe. Sobreviventes contam que o que potencializou o naufrágio foi a entrada de água na Casa de Máquinas, o que causou a explosão de duas caldeiras e rompimento definitivo do casco.
Foram menos de cinco minutos apenas para que a luxuosa embarcação catalã fosse sepultada pelo profundo mar da região, levando consigo cerca 450 vidas, afundando juntos ou sendo mortos por afogamento ou pela violenta colisão com as rochas da pequena ilha. O capitão José Lotina e o primeiro imediato, Antônio Salazar Llimas nem esperaram o cume da tragédia, suicidaram-se com um tiro na cabeça.
O saldo total de passageiros e de mortos nunca comprovou se haviam de fato imigrantes clandestinos na embarcação, isto levando-se em conta que próximo a Casa de Máquinas, nos alojamentos, podiam facilmente ser abrigados mais de mil pessoas. Muitos dos corpos acabaram por ser enterrados na própria praia, já que o local é de difícil acesso para o resgate. Apenas em 1989 foi autorizado o resgate de bens e objetos do navio, que encontra-se num ponto muito profundo da região.
Os restos, a exploração, a história
Os anos se passaram, e a embarcação tornou-se um verdadeiro patrimônio preservado pelos poucos fungos que o habitam. Mas para chegar a esta riqueza aquática não é nada fácil. A região onde houve o naufrágio é considerada uma das mais difíceis de mergulho no país devido ao agito do mar e a instabilidade do tempo causada pela localização da Ponta da Pirabura, a primeira a sofrer com as intempéries.
No entanto, para quem consegue chegar no Príncipe de Astúrias o premio é incalculável, com a curiosidade de explorar as ruínas do navio sendo o maior motivador. Mas a profundidade das águas é traiçoeira e o constante movimentar da corrente pode trazer muitos problemas para quem explora o local.
Felizmente, para os curiosos mais aguçados sobre a história da tragédia, o Museu Náutico localizado no Parque da Usina Prefeito Geraldo Junqueira, em Ilhabela, guarda vários objetos e peças recuperadas do navio, além de uma réplica em escala da embarcação. Quanto as estátuas de bronze, algumas chegaram a ser recuperadas um tanto quanto danificadas. Uma delas está em frente a desse do Serviço de Documentação Geral da Marinha do Brasil, na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro.
No último sábado, a Prefeitura de Ilhabela e a Delegacia da Capitania dos Portos em São Sebastião promoveram um cerimonial de homenagem as vitimas do desastre. Realizada a bordo de um navio da Marinha estacionado próximo a Ponta de Pirabura, a solenidade prestou justa lembrança a aqueles que, durante o sono, foram ceifados por uma catástrofe jamais esquecida na história da navegação nacional, cuja presença na história está muito além dos objetos e registros, mas sepultada para sempre na imensidão azul do mar brasileiro.