Esta canção é a mais fiel representação do que foi a noite santa do Natal para o cristianismo. Sua melodia, cálida e sensível atravessa gerações há quase 200 anos, nascida numa pequena cidade do antigo Reino da Áustria por obra de um padre e um amigo professor de música que teve a responsabilidade de tornar uma poesia escrita a punho numa canção imortal. De corais, cantores, instrumentistas e grupos vocais, esta música tem versões traduzidas em mais de 40 idiomas e há cinco anos é patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco.
A clássica Noite Feliz (Stille Nacht, em alemão, sua língua de origem) é uma das melodias que não pode faltar em qualquer Natal de quase todo o lugar do mundo. Sua forma simples e tranquila de expressar o sentimento que corria por aquele modesto casebre em um campo de criação de ovelhas em Belém (Judéia) é repetida ipsis litteris por adultos, crianças, jovens e velhos, nem que sejam apenas algumas frases da sua composição. Ainda assim, é aquela tal canção que inspira e faz-nos voltar no tempo, mostrando o quão nostálgico é o Natal para muita gente.
O nascimento: O padre poeta e um amigo músico
A história da canção através dos tempos remete-nos aos primeiros tempos do século XIX, na pequena cidade de Oberndorf, na região de Salzburgo no então Império Austriaco (pré Áustria-Hungria). Há controvérsias com relação aos fatos, mas o que se sabe a respeito é que, no Natal de 1818, o padre Joseph Mohr procurou o amigo, professor e músico Franz Xavier Gruber, pedindo-lhe que transformasse a poesia que havia escrito a punho em uma canção que seria tocada na missa do galo que seria rezada horas depois na Igreja de São Nicolau, onde era o pároco responsável.
Há fontes que indicam que esta poesia teria sido escrita dois anos antes, em 1816, e outras fontes dizem que o padre Mohr escreveu os versos quando estava a caminho da casa de Gruber. Preocupado por ter perdido seu órgão – que teve os foles roídos por ratos – o sacerdote estava a procura não de um músico mas de um instrumento musical para ser tocado na celebração. O primeiro arranjo da música foi composto para violão e flauta, sendo alterado algumas outras vezes até chegar a uma composição para orquestra, feita em 1845.
Displicentemente, numa visita a pequena capela do Padre Mohr para consertar o pequeno órgão, um mestre de órgãos obteve uma cópia da partitura da canção e a levou consigo. Após isto, relatos contam que duas famílias que excursionavam por aldeias cantando músicas populares no Vale do Ziller incorporou a peça no repertório de músicas. A canção foi executada pela primeira vez por eles em dezembro de 1832, na cidade de Leipzig (hoje na Alemanha), e dali, meio que tímida e discretamente, aquela poesia natalina espalhou-se pelo mundo, sempre deixando um rastro de histórias emocionantes onde fora executada.
Diz uma história, dentre tantas sobre a melodia, que durante o primeiro ano da Primeira Guerra Mundial (1914), a canção teria sido cantada na famosa Trégua de Natal entre soldados alemães, franceses e ingleses nas trincheiras, que para aquele período haviam sido decoradas com enfeites natalinos. Chega a ser estranho, mas na mistura de canções e decorações de ambos os lados, logo cada um estava cantando a Stille Nacht juntos e nos seus idiomas respectivos.
Na mesma hora, cada lado deixou os armamentos de lado e começaram a trocar presentes, meramente coisas que tinham em mãos no momento, como álcool e tabaco, além de disputarem uma partida de futebol entre si. A passagem é retratada no filme Feliz Natal (Joyeux Noel), de 2005, e vale a pena ver.
Veja o trailer. O filme pode ser encontrado completo no YouTube:
O padre Joseph Mohr morreu em 4 de dezembro de 1848, sete dias antes de seu aniversário de 56 anos, na cidade austríaca (então austro-húngara) de Wagrain. Já o professor e músico Franz Xavier Gruber morreria em 1863, aos 75 anos, na cidade de Hallein. Antes de morrer, o professor Gruber havia recebido, há nove anos antes, uma nobre visita: A do rei Guilherme IV da Prussia, que o procurou para conhecer o autor daquela que tinha se tornado sua canção favorita.
Apesar de, por um período da história, passar por um esquecimento, as memórias do padre Mohr e do professor Gruber são hoje motivo de reverencia na pequena vila de Oberndorf, para onde centenas de turistas vão Natal após Natal para conhecer de perto o local de nascimento da melodia. No túmulo de Gruber, todos os anos, é decorada uma árvore de Natal em sua memória. A Igreja de São Nicolau, no entanto, não existe mais. Foi demolida no início do século passado devido aos constantes problemas com alagamentos que sofria. O templo estava localizado próximo ao Rio Salzach, que corta as imediações da vila.
No seu lugar, uma pequenina capela foi erguida na cidade entre as décadas de 1920 e 1930, num local 800 metros mais alto que a antiga igreja. Batizada de Capela Memorial da Noite Silenciosa (Stille-Nacht-Gedächtniskapelle), o pequeno templo tem nos seus vitrais menções a Mohr e Gruber e é o destino de mais de 7 mil peregrinos que a procuram para a missa de Natal. Isto independente do lugar abrigar tão somente 20 pessoas no seu interior.
A Stille Nacht no Brasil: O franciscano jornalista e a caixa de velas
Quando falamos de Noite Feliz em solo tupiniquim lembramos daquelas versões que, costumeiramente ouvimos no rádio, na TV ou onde for. Seja a clássica de Luis Bordon, executada em harpa paraguaia, ou na melodia sertaneja de Victor & Leo, seja batizada como Noite Feliz, Noite Silenciosa (versão na harpa de Bordon) ou Noite de Paz (cantada por músicos gospel evangélicos, com letra diferente), a melodia tem várias versões e roupagens feitas em nossa terra, para crianças e adultos, mas com o mesmíssimo significado.
No entanto, se todas estas versões existem, elas devem-se a um Padre franciscano teuto-catarinense que, no distante 1912, fez a primeira tradução da música para o português. Frei Pedro Sinzig, nascido na Alemanha mas que conduziu trabalho no sul do Brasil, foi o responsável pelo feito. Sacerdote e jornalista, Frei Pedro tinha uma habilidade única com a escrita entre os colegas franciscanos, escrevendo de romances e poesias a peças de música sacra.
Mas sua maior contribuição para a cultura nacional, sem dúvida, seria em 1912, quando era apresentada pela primeira vez a tradução para o português da canção. A primeira execução da melodia em nossa língua, segundo consta, foi no primeiro dia de Natal daquele ano por um coral de alunos da Escola Particular da Estrada Catarina, em Joinville. A versão feita por Frei Pedro seria amplamente divulgada através de folhetos que vinham anexados a caixinhas de velas produzidas pela antiga Cia. Wetzel Industrial (atual Wetzel S/A), também de Joinville, e que eram vendidas no país inteiro.
E de uma caixa de velas de Natal vinda do norte de Santa Catarina surgiu para o Brasil inteiro a versão de Noite Feliz que, mesmo com pequenas alterações nas letras para determinadas versões, é uma das melodias mais cativantes e nostálgicas do tempo natalino para todos nós. De uma aldeia na Áustria para o mundo, versões instrumentais e cantadas se multiplicaram. E A BOINA escolhe três dentre tantas versões para mostrar a pluralidade com que Noite Feliz é ouvida pelo mundo afora.
A primeira, mais clássica impossível, a versão instrumental de Luis Bordon:
https://www.youtube.com/watch?v=HIb8CVkurkQ
A segunda, na voz de Julio Iglesias, numa mescla da original alemã com castelhano:
A última, uma versão em inglês e português com os irretocáveis do Roupa Nova:
André,
Mais uma bela pesquisa e sobre essa data tão encantadora que é o Natal.
Feliz Natal a todos!
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau
Bela história, belo texto!