Urda em A BOINA: Churrasco de Igreja

(Urda Alice Klueger)

Aquele aroma vem lá da minha infância mais antiga, do tempo em que ainda não tinha quatro anos, e é inesquecível e incomparável. Em dias de festa, e houve alguns naquele período em que começo a lembrar das coisas, meu pai fazia o perigoso braseiro no chão do rancho, rodeado por alguns tijolos, e meninas pequenas como eu ficavam proibidas de aproximar dali um dedinho que fosse.

O fogo, assim como a água, continuam exercendo seu fascínio atávico sobre o ser humano, e ainda me lembro muito bem do rubor daquelas brasas vivas e perigosas, que logo eram cobertas pela grelha de ferro, utensílio importantíssimo naqueles tempos remotos – e que continua a existir, principalmente em festas de igreja.

Então, quando a grelha incandescia, lá vinham os churrascos para assar, mergulhados no tempero desde a véspera, e meu pai, que sempre foi hábil cozinheiro, sabia direitinho o que se usar para um churrasco, ou cinquenta, ou cem – temperava os churrascos para um casamento inteiro, ou para o que fosse, as quantidades sabidas de cabeça, tanto de sal, tanto de pimenta do reino, tanto de cebola cortada, tanto de vinho, tanto de cerveja, um pouco de limão.

O ambiente animado de uma edição da Festa do Divino, aqui em 1976. Evento ocorre sempre em maio na Catedral São Paulo Apóstolo. Um dos tantos exemplos das animadas e aconchegantes festas de igreja (Reprodução)

Acho bom clarear o conceito de churrasco para quem não é nativo do Vale do Itajaí – nosso churrasco é aquilo que os gaúchos, por exemplo, chamam de chuleta, e quando, aos poucos, outros povos começaram a povoar este vale que fora por algum tempo dominado pelos imigrantes e seus descendentes, e se espantarem pelo nosso conceito de churrasco, espantamo-nos também, pois, para nós, o churrasco era aquilo que a nossa cultura nos passara.

Lembro da primeira vez em que estive num churrasco em distante lugar, e o quanto me espantei com tantas carnes, porcos cortados ao meio com os dentes ainda formando meio sorriso e coisas assim, sal grosso em lugar de vinha d’alhos, espetos – tive um choque, assim como devem ter tido os que vieram de fora e se depararam com o que sabíamos.

Imagino, no entanto, que os migrantes não devem ter se chocado com aquele aroma que se espalha pelo ar quando aquelas chuletas temperadas de véspera vão para a grelha e rescendem àquela inebriante fumaça de carne assando no seu melhor tempero, assim como meu pai fazia.

Ao longo das últimas décadas, o churrasco gaúcho foi tomando conta dos restaurantes e costumes desta região onde vivo, e penso que hoje já pouca gente sabe, como meu pai sabia, as quantidades certas de tempero para cinquenta ou cem churrascos, e além de um ou outro lugar esparso, como algumas casas ou alguns assadores, o nosso churrasco tradicional está circunscrito às festas de igreja. E hoje é um tempo em que a gente diz coisas assim:

(Reprodução)

Vou comer um churrasco de igreja na festa da Nova Rússia! – pode ser em outro lugar, o que importa é a tradicionalidade daquele tempero de véspera, a grelha de pernas curtas sobre o braseiro, aquele aroma que eu diria divino se espalhando pelo ar, coisa que foi tão bem preservada pelas igrejas, nas suas festas!

O nosso churrasco tradicional hoje se chama churrasco de igreja, e lembrando o que meu pai fazia, eu ainda arrisco fazer o tempero de uma ou duas peças daquelas, para obter resultado mais ou menos igual, e fico caçando os anúncios de festas de igreja para ir lá comer aquele que é o tradicional churrasco da minha infância, e nessas ocasiões, sinto tamanha saudade do meu pai

(Originalmente publicado em 02/12/2014 no blog de Adalberto Day)

1 comentário em “Urda em A BOINA: Churrasco de Igreja”

  1. André, parabéns mais uma vez por postar esse texto sobre churrasco de igreja. A Urda que faz aniversário amanhã 16/02, fez este belo relato a meu pedido e em homenagem ao seu pai e amim. Ela desde 2012, dizia que quando eu me curasse do câncer, ela iria me levar para comer um churrasco de Igreja. Ela insistiu algumas vezes, mas foi impossível. Desde então nunca mais passou carne em minha garganta debilitada pelas 38 sessões de radioterapias. Hoje nossa querida Urda não mora mais em nossa Blumenau, ela como garciense merece todo nosso registro de carinho e apoio.
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

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