Recordação feliz. Em uma aula de Telejornalismo II do sexto semestre de jornalismo no IBES Sociesc, recebemos do professor e ás da notícia blumenauense Alexandre Gonçalves a tarefa de trazer para a sala de aula um exemplo de programa de jornalismo investigativo. Estávamos entrando numa fase de conhecimento mais profundo sobre os objetivos de uma reportagem, saindo do clássico de telejornal para as grandes produções jornalísticas.
Na aula seguinte, trouxe no bojo algo que surpreendeu a sala mais pelo desconhecimento do programa do que pelo seu conteúdo. Diante deles, um programa que muitos brasileiros arriscam tachar como o melhor jornalístico já produzido no país e que ousou a meter a mão em uma face do Brasil que não víamos todo dia ou em todo o telejornal.
Criado e produzido pelo jornalista Nelson Hoineff nos corredores da então jovem Rede Manchete, o Documento Especial: Televisão Verdade foi ao ar pela primeira vez em 2 de agosto de 1989, noite de uma quarta-feira. A julgar pelo nome, podia ser simplesmente um programa de investigações vigiado, simples como outros na mesma linha. E num país recém-saído da ditadura, uma atração assim seria mais uma entre as demais.
No entanto, quem colocou os olhos naquele primeiro programa e nos seguintes, não estava diante de um programa asséptico como era o primo mais próximo, o Globo Reporter. No início, as letras brancas em fundo vermelho já alertavam que as imagens que seriam vistas a seguir eram fortes e não recomendadas para menores e pessoas sensíveis.
O Brasil nu e cru em um minuto… no Documento Especial
A lei era a verdade, impacto, mas não o sensacionalismo, mesmo que sutilmente. Produção independente que encontrou guarida na casa dos Bloch, Documento Especial tinha um objetivo apenas: A realidade nua e crua, sem nada a esconder. A cada semana, uma reportagem de 30 minutos ia ao ar revelando uma face oculta do pais, além de tocar profundamente em assuntos que qualquer brasileiro tinha curiosidade mas não coragem de perguntar.
Era o impacto sem sensacionalismo, o verdadeiro mergulho no underground brasileiro. No comando da atração, o ator Roberto Maya, figura clássica de novelas e algumas pornochanchadas (termo que não gosta de usar) dos anos 70 e que revezava-se entre a atração e a bancada do Jornal da Manchete, outro programa que contribuiu para uma oxigenada no jornalismo brasileiro. A locução sem maiores entonações de voz, simples e séria, dava o tom necessário e marcante para a ambientação das histórias apresentadas.
Na tela, o Brasil assistia o outro lado de histórias que os telejornais não entravam com profundidade ou os grandes programas jornalísticos não tinham peito para enfrentar. Naquela viração de década, o país estava em convulsão completa: Crise econômica, redescobrindo uma identidade perdida, carestia, pobreza, insegurança, impunidade. Alguns elementos que, ainda hoje, estão presentes em esquinas escuras das grandes cidades e em recôncavos escondidos.
Equipe valente, histórias surpreendentes, realidade sem pudor
A equipe de produção do Documento Especial, dura na queda, talvez foi a mais corajosa da TV brasileira em muito tempo. Num país vindo de tempos de censura, imergir de vez em campos de tráfico de drogas, mazelas ignoradas, sexo explicito e mortes com corpos a mostra era um horizonte novo e tenebroso de histórias. Conseguir material não era uma tarefa nada fácil, enfrentando criminosos perigosos, fogo cruzado, agressões e toda a sorte em perigos.
Basta observar cada história para se espantar com a ousadia dos profissionais que a descobriam. Os morros do Rio de Janeiro estavam no negro auge da violência e do descontrole social. Diante das lentes do programa, tipos corriqueiros e que pouco falavam num jornalístico comum, mais frente ao Documento Especial, disparavam depoimentos surpreendentes. De corruptos sociais e pequenos delinquentes a perigosos traficantes munidos de metralhadoras. Isto sem contar os tiroteios ao vivo e seus mortos sem disfarces e submundo dos inferninhos do sexo em São Paulo, em busca de realidades que despertavam curiosidade nos lados ocultos do pensamento.
Nas produções que percorreram os primeiros anos da década, fomos apresentados ao lado negro das ditas glamourosas noites cariocas, permeadas de balas, brigas, violência e excessos. No Rio, vimos os pobres ir a praia e assistimos uma cidade maravilhosa acuada entre máfias urbanas prontas a levar vantagem. A famosa Avenida Brasil foi revelada ante a realidade cruel que permeia suas margens.
O futebol brasileiro, decadente daquele período, foi esmiuçado em seus defeitos e nostalgias depois do fiasco da Copa de 1990. A Transamazônica revelou histórias que jamais veríamos nos discursos ufanistas dos militares. As tribos urbanas foram apresentadas em seus detalhes. Surfistas ferroviários, pichadores e neonazistas foram expostos sem pudor em seus atos mais tenebrosos e covardes.
O sexo em seus assuntos mais tabu, incluindo a homossexualidade ainda desconhecida de muita gente, foi mostrado pela primeira vez de forma explicita na TV. Não de forma escrachada, mas investigada. Até mesmo a hoje tão poderosa Igreja Universal foi destaque, sendo tema de um programa revelador das práticas ocultas dentro da instituição. Inúmeras histórias, todas elas na mesma abordagem verdadeira e crua, sem pudores nem censuras.
Neste período, muitas das histórias convergiam especialmente para um único complicador: Impunidade. Um programa dentre tantos merece uma menção especial: Em 1992, já no ar pelo SBT, o Documento Especial foi afundo no tema, replicando na situação nacional, sobretudo no início das investigações sobre o esquema PC e na eminencia do impeachment de Fernando Collor.
A época, esta reportagem foi vetada e caiu direto na gaveta da emissora de Silvio Santos. Iria para o ar pela primeira vez 15 anos depois, este ano, na retrospectiva do programa feita pelo Canal Brasil e com a apresentação do próprio Nelson Hoineff. Um retrato de uma realidade política que ainda nos assombra atualmente.
O SBT foi uma das emissoras em que o Documento Especial esteve depois do fim do contrato com a Manchete, em 1991. Na emissora dos Bloch, Henrique Martins foi chamado para comandar o Manchete Especial: Documento Verdade, que tinha a missão ingrata de substituir o programa, mas o fez sem o mesmo impacto de outrora.
Hoineff e Roberto Maya estiveram na TV mais feliz do Brasil entre 1992 e 1995, chegando a faturar o Prêmio Príncipe Rainier III no Festival Internacional de TV de Monte-Carlo, em 1994, com a reportagem intitulada Vidas Secas sobre a seca do nordeste, destacando a relação do homem com o ambiente seco do sertão.
Divergências com Silvio Santos, cujo Hoineff acusou de estar sendo censurado em alguns temas, a atração deixou o SBT e ficou um ano fora do ar. Retornou a TV na Bandeirantes para um período curto e apagado de volta as telas entre 1997 e 1998.
Os tempos de Manchete e o curto período no SBT foi o mais produtivo e feliz para o programa, que deixou registrados para a história produções corajosas e incisivas na busca pelo lado escondido da brasilidade, além de preciosos documentos que revelam as mazelas de uma nação perdida em si nas crises em que estava envolto.
Algumas delas, deixamos aqui embaixo em destaque, para um momento de descontração mergulhando nestas histórias outrora desconhecidas. Fica o aviso para quem interessar que as imagens não são recomendadas para menores e pessoas sensíveis.
Creditos a Comalt – Comunicação Alternativa, que deu a estes documentos o tratamento digno de produtos históricos e cinematográficos. Outras reportagens podem ser encontradas no YouTube. Basta uma simples pesquisa.
https://www.youtube.com/watch?v=nwvC3cHPb0o