Enquanto estamos (ao menos, tentando) viver em quarentena e dentro das medidas de prevenção diante do coronavírus, muitos amantes da história e estudiosos se debruçaram sobre um assunto que, por décadas, permaneceu um tanto intocado e camuflado como uma mera consequência da Primeira Guerra Mundial.
Recordar o que foi a temida Gripe Espanhola (que, de espanhola, só tinha o nome) mostrou-se muito mais do que rever um mero fato do ambiente bélico da guerra. Bem além dos moedores de carne que viraram as trincheiras, a chamada “mãe das pandemias” vitimou algo próximo de 100 milhões de pessoas em um cenário que expôs ignorâncias, mazelas e arcadismos higiênicos por todos os lados onde esteve. Algo, vamos convir, muito semelhante ao que vemos hoje.
Para quem não sabe, pandemias e epidemias são movimentos inevitável e infelizmente naturais se formos compreender o seu surgimento e contágio ao longo dos anos. Condições naturais, seja por ação do homem ou da natureza, propiciam o surgimento de mutações virais e de outros organismos responsáveis, desde surtos menores até o coronavírus atual. Este originado de complicações virais quase comuns em regiões asiáticas, cujas condições ambientais e a poluição favorecem um cenário como este.
Foi assim com a Peste Negra, talvez a primeira grande pandemia conhecida na história. Ao contrário do coronavírus, a peste foi resultado de uma bactéria transmitida pelas pulgas de uma espécie de rato comum na Ásia e que se espalhou pela Europa vindo pela antiga rota da seda, no Mediterrâneo, e tomando conta de todo um continente.
Entre ilações religiosas e as condições nulas de higiene daqueles tempos, o número de mortos superou os 200 milhões entre 1343 e 1353 e só desapareceu por completo no início do século XIX. No meio de tudo isto, surgiram as icônicas vestes de médicos, com suas máscaras pontiagudas que inibiam o cheiro pútrido ao mesmo tempo que judeus e outros grupos étnicos foram colocados no meio do foco do contágio, como culpados pelo caos.
No entanto, quando pensamos em pandemia do passado, mesmo depois do status de “esquecida”, a Gripe Espanhola veio quase que automaticamente a mente de todos que, ao menos, tinham uma lembrança vaga sobre o que foi esta primeira aparição do vírus que, hoje, conhecemos bem: o H1N1 (Gripe A). Era uma mutação gênica mais agressiva e, como a peste – considerando os parâmetros da época – as condições higiênicas, somadas a outros tantos fatores, foram responsáveis pelo estrago que viria naquele 1918.
Quem lembra da Gripe Espanhola, provavelmente a viu em jogos e filmes da cultura pop, ouviu avós falando sobre ela em algum momento ou, como eu, a viu sendo retratada na minissérie JK, da Rede Globo, onde o jovem Juscelino Kubitschek tem seu sonho de cursar medicina facilitado por conta da demanda por médicos naquele tempo em que trabalhava na capital mineira como servidor público. A curiosidade ficou e o espanto também ao descobrir do que se tratava de fato o período da pandemia.
EUA, trincheiras e navios: o caminho do influenza
O seu surgimento é incerto. A versão mais aceita foi a de soldados americanos (quem diria, Trump!) que contraíram o vírus em campos de treinamento no Kansas e que o levaram aos fronts de batalha na Europa. As parcas condições higiênicas nas trincheiras e a constante movimentação de soldados após o conflito foi determinante para espalhar o caos. O mundo estava vivendo uma pandemia na prática e, o mais dolorido, sem saber de fato que a vivia.
Com a imprensa dos países beligerantes evitando notícias que afetassem a moral das tropas, sobrou a bomba para os espanhóis, não envolvidos no conflito e com a imprensa aberta aos fatos em volta. A gripe contagiosa que começava a matar aos borbotões caiu nas páginas dos periódicos daquele país e o influenza fatal passou a ser rotulado de “espanhol”. Uma origem nominal infeliz, digamos.
E é nessa hora que certos pontos de um século atrás coincidem com a movimentação do coronavírus. Tal como a Covid-19, a Gripe Espanhola se aproveitou das facilidades existentes para movimentação de pessoas. E quando se diz “movimentação fácil” refere-se as formas de como a chamada “segunda revolução industrial” propiciou para a locomoção das pessoas, como ferrovias e companhias de navegação. Algo como atualmente, se viveu nos aeroportos, uma das primeiras preocupações quando recebiam por dia um sem-número de pessoas de várias partes do mundo sem o controle devido nos primeiros movimentos da doença.
A falta negligente de informação, seja do meio político ou de setores da imprensa, também coincide com o momento entre o influenza e o Sars-Cov-2. Não foi apenas o fato de que os espanhóis aproveitaram seu status de imprensa livre para informar da doença – e acabar rotulados por ela – mas sobretudo a forma como ela era tratada em vários países, muito além da falta do conhecimento científico sobre a gripe, o que fazia que muitas das intervenções médicas fossem, meramente, para aliviar o sofrimento dos adoecidos.
Nos EUA, por exemplo, as notícias sobre a proliferação do vírus não foram suficientes para cancelar um desfile marcado para arrecadação de fundos para os combatentes da guerra na Filadélfia. Foram mais de 200 mil pessoas na rua no dia do evento e, em apenas 72 horas, todos os 31 hospitais da cidade estavam lotados e 4500 pessoas morreram em consequência da doença.
Lendas, pavor, morosidade e caipirinha: a Gripe Espanhola no Brasil
E o Brasil? Onde entra nessa ciranda mortal toda? A chegada do vapor inglês Demerara, partido de Lisboa, em setembro de 1918 é o marco inicial da Gripe Espanhola em nossas terras. Por parecer algo simples, a doença não foi tratada com a devida seriedade, isto até as pessoas começarem a morrer e aos montes, sobretudo nas paradas onde o Demerara esteve: Recife (PE), Salvador (BA) e Rio de Janeiro. O total de mortos no Brasil é de 35 mil, e apesar de parecer baixo, basta dizer que 2/3 da população do Rio de Janeiro, à época capital federal, adoeceu por conta da Gripe Espanhola.
Foi só com a insistência do biólogo e sanitarista Carlos Chagas ao governo federal que a Gripe começou a se tratar uma demanda urgente na saúde brasileira, deficitária em muitos setores e que ainda dependia muito mais de instituições de caridade (as santas casas, como são conhecidas) para o atendimento médico ao público. Proibição de aglomerações, quarentena, fechamento de escolas, teatros e parte do comércio, hospitais e postos de saúde emergenciais, tudo surgido da insistência de Chagas, mas as cenas seguintes seriam tétricas.
Com a propagação rápida, muitos morriam nas calçadas e os serviços funerários não estavam preparados para a demanda ou temiam a contaminação, num cenário assustador sem precedentes no país. Entre os 35 mil mortos, uma presença célebre: a do então presidente eleito Rodrigues Alves, que assumiria o cargo em novembro de 1918, mas “espanholado” (termo usado para os contaminados pela gripe), adoece até a morte em janeiro de 1919. Olhando para os dias atuais, nem é preciso dizer que o atual mandatário parece querer acabar com seu par de cem anos atrás.
De modo tresloucado, leis e normas são baixadas com vistas de evitar aglomerações e buscar alternativas para uma economia ainda minguada e que sentia os baques da paralisação forçada. Uma das leis determinava aprovação automática de alunos da rede pública de ensino, outra proibia a visitação de túmulos no dia de finados, também como forma de evitar de serem vistas as pilhas de cadáveres nos cemitérios.
Como nos dias de hoje, as farmácias estavam entre os poucos serviços abertos, onde remédios, tônicos e elixires “milagrosos” eram disputados a tapa. Um deles, em São Paulo, é uma receita caseira que originou uma das bebidas mais famosas do país: a caipirinha. Diz a história que a receita de cachaça com limão e mel era eficaz contra a Gripe Espanhola, o que cria uma corrida sem fim as mercearias em busca de limão e pinga. Tudo uma, como dizemos hoje, “fake news”.
Aliás, informações desencontradas também fazem parte da realidade cotidiana durante a pandemia de 1918, tal qual como hoje. Uma delas era a história de que a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro acelerava a morte de doentes em fase terminal com um chá envenenado, o tal do “chá da meia-noite”. Lenda esta que estampou jornais e revoltou autoridades sobre a forma como histórias como esta eram levadas a sério.
Por fim, uma das atitudes mais importantes com reflexos atuais no país durante a pandemia foi o surgimento do Ministério da Saúde. A cadeira hoje ocupada por Luiz Henrique Mandetta era um mero departamento pouco considerado nas rodas de poder brasileiras e subordinado ao Ministério de Justiça. Foi só com muitos debates e insistências que, já com a Gripe Espanhola controlada no país, entre 1919 e 1920, que foi aprovada a reforma no setor de saúde nacional, a semente para o ministério, nascido em 1930, e as bases para o que seria o SUS (Sistema Único de Saúde), no distante 1988.
Como podemos ver, semelhanças com relação ao que vivemos hoje diante do coronavírus existem e são reflexos claros do momento que vivemos. É notável que, diante de tantas coincidências negativas, ainda não tenhamos evoluído, o que é pior, muitos não só ignoram solenemente os pedidos de isolamento como também empurram a Covid-19 para a seara da política, num debate funesto e desnecessário que cobra com ignorâncias a necessidade do cuidado.
Mas, se por um lado retrocedemos como humanos pensantes, por outro há uma grande chance de se chegar ao fim da charada com mais rapidez que o normal. Dizer que o panorama é pior que 1918 é ignorar que temos a capacidade científica muito mais avançada para chegar a uma resposta final. Desacreditar esta classe é correr de encontro ao risco, como fizeram na Filadélfia, com estragos que a história não nos deixa esquecer.
Rever 1918 e a Gripe Espanhola é reaprender com os erros que podem, hoje, ser facilmente corrigidos. A história é a melhor vacina contra a ignorância, especialmente a institucional, e como fora naquele período de sustos e incertezas, este também há de passar, com suas reflexões e história para as próximas gerações.