“Exemplo de funcionário: trabalhava aos domingos e era o primeiro a chegar”.
Este e outros termos já tão utilizados, como “herói” e “mito” (este último, hoje em dia, talvez não pegue tão bem direcionado a ele) rolam aos borbotões nas redes sociais em mais um dia 1º do mês de maio.
Para qualquer brasileiro que sabe e conhece o que aconteceu, lembrar e falar de Ayrton Senna sempre vai trazer a mente todo um livro de adjetivos, os mais positivos é claro. Os que tiveram sorte de viver suas vidas acompanhando na TV os lances magistrais do “Béco” na pista não tiram das retinas as lembranças mais bonitas do Tema da Vitória executado a exaustão naquelas manhãs de domingo tão saudosas.
No entanto, e já passadas duas décadas do seu repentino desaparecimento em uma curva de Ímola, um garoto brasileiro de 28 anos e apaixonado pela história e lances da F1 faz sobrar perguntas e faltar palavras: O que mais falar de Senna? Como refletir sua vida nas pistas sem cair no pachequismo comum? Como persuadir o leitor que expressões como “no tempo do Senna”, “como Senna não vai ter igual” ou “a F1 não tem graça sem Senna” são exageros de mentes feridas até hoje?
Este garoto, não por nada, sou eu mesmo, um escriba que procura justamente falar de Senna sem ser “pacheco” e, no fim de tudo, trazer uma reflexão com ponta de gratidão. E não posso pensar ou escrever diferente. Se eu tenho sangue em forma de gasolina e meus livros de história são anuários e revistas GRID, o culpado é, justamente, o filho do casal Milton e Neyde Joanna, irmão do Leonardo e da Viviane, tio do Bruno e, por nós, corriqueiramente chamado de “chefe” com propriedade.
Nascemos em estados e cidades diferentes, mas em anos redondos. Ele na já movimentada São Paulo de 1960, eu na germânica Blumenau de 1990. Quando vim ao mundo, precisamente num dia 18 de maio, ele já estava com 30 anos completos e vinha de um amargo abandono no GP de San Marino por conta de um pneu furado (a corrida fora, exatamente, no dia 13). Ele ainda era o líder de um campeonato tenso, porém de começo um tanto embolado. Além de Alain Prost, estavam rondando a ponta gente como seu companheiro, Gerhard Berger, Nelson Piquet e Thierry Boutsen, os únicos que pontuaram duas das três corridas ou nas três corridas iniciais daquele ano.
Meu pai era um daqueles que vibravam quando a bandeira do Brasil estava no alto de alguma coisa. Podia ser jogo de futebol com burricos, mas se o Brasil estivesse ganhando era perfeito. Aliás, filosofia essa acompanhada por muitos nesse país, mas não vale entrar no mérito da questão. De volta aos domingos de manhã daquele período, não eram raras as vezes que meu pai me colocava em frente à TV para acompanhar esportes, especialmente quando Senna estava na pista para mais um embate daqueles.
Eram outros tempos, aqueles tempos da F1 onde com qualquer tostão furado você montava uma equipe (aquelas que nós, adeptos ao Lado B, apreciamos). Tempos de rivalidades na pele, travadas de pneu com vontade, roncos de motor de verdade, carros domados a unha e de sobrenomes como Piquet, Prost, Mansell, Berger e outros enchendo a TV. Tempos de Senna, que era a grande audiência do dia e que fazia até mesmo o baladeiro mais tresloucado acordar de manhã para ver F1, coisa impensável hoje.
As minhas memórias até os três anos de idade não são tão límpidas, admito. No entanto, juro de pé junto que estava bem aceso em alguns momentos de 1993 em que pude ver Ayrton em ação. O GP da Europa daquele ano mesmo é uma das mais vívidas, mesmo que só fui entender o significado daquela volta excepcional um ano depois e com as relembranças dos feitos de Senna já morto. Mal sabia de Prost e não podia nem imaginar que Rubens Barrichello estava em terceiro, a quatro reles voltas do fim, quando sua Jordan o traiu repentinamente. Maldades que uma criança ainda não entendia no esporte.
Enfim, a F1 fazia parte de minha vida quando criança de forma tão vívida graças a Senna que não tive outro caminho a seguir. Minha festa de aniversário de três anos tinha o seu capacete amarelo-verde-azul e a Lotus 98T colados na parede e um bolo em forma de circuito para ser cortado. Toda a hora era fácil me ver com carrinhos de corrida de metal nas mãos, imaginando pilotos e temporadas no divã da sala ou na mesa da cozinha, levando cada curva feita na maior seriedade como nas corridas onde estava Senna.
Mas aí veio o tal 1º de maio. E enquanto minha fantasia ainda tinha Senna entre os carrinhos de faz-de-conta, o Béco de Neide e Milton enchia a mais de 300 por hora o muro sólido da Tamburello na sétima volta, aos olhares de um jovem Michael Schumacher, dos fiscais de pista e até das borboletas de Adriane Galisteu que voavam naquele espaço de tempo. A família prendia a respiração e pedia insistentemente para eu ficar quieto. Algo estava muito errado.
E estava. Era de tarde quando a notícia chegou: Ayrton Senna, 34 anos, três títulos mundiais, 41 vitórias, 65 poles, estava morto. A comoção, as revoltas, a busca por culpados. A chegada ao país para a despedida com honras de chefe de estado, o cortejo com os companheiros de pista em volta, a ida para o cemitério, chuvas de papel picado e a TV cerradamente falando o mesmo assunto.
O país ferido dos anos 1980 balançou outra vez com a perda de seu ídolo… E eu? Criança sem entender de morte, começava a me maravilhar ainda mais com aquela turma de alucinados acelerando bólidos em busca de uma glória maior. Isso tudo enquanto o país chorava a perda. Pode parecer cruel, mas quem pode culpar uma criança de três anos de idade que não compreendia ainda o tamanho de uma morte e só queria ver carros acelerando e dividindo curvas?
Foi-se o piloto, ficou o campeonato. Nos anos seguintes fui cada vez mais me empurrando para este mundo veloz, caindo de boca dentro da história, dos pilotos que foram tão lendários quanto Senna e dos outros tantos momentos de um esporte que, para os seus aficionados, ainda provoca arrepios. Pode não ser a mesma coisa que era naqueles meados tão intensos da década de 1990, mas o que Senna plantou em muita gente acabou ficando. Não essa síndrome de viuvez eterna, mas a paixão pelo esporte que independe se há ou não um piloto brasileiro na pista.
Hoje, falar de F1 é quase raridade nas rodas de conversa. Nos tempos de Senna, qualquer bate-papo em uma bodega de bairro tinha ele e seus contemporâneos sendo citados entre um gole e outro de cerveja. Atualmente, você é quase um alienígena e a palavra que vem da boca de qualquer um é como um uníssono: “não é mais a mesma coisa sem Senna”, ou “não vai ter outro como Senna”, ou ainda “não vejo mais F1 desde que o Senna morreu”, fora os impropérios contra gente que batalhou pra, de alguma forma, manter o Brasil em evidência nas pistas, como Barrichello e Felipe Massa, entre outros.
Ainda estes dias, encontrei-me com uma querida amiga pelo centro de Blumenau. Surpreendentemente, ela começou a falar e perguntar coisas com o maior interesse sobre a F1 e seus personagens, dado que ela e o namorado acompanham a temporada atual. A amizade só aumentou e a promessa de um “almoço didático” sobre F1 está feita. Caso raro, mas que mostra que o que Senna deixou não é idolatria viuvesca, mas sobretudo a fixação pela velocidade, pelos lances, pela história e pelos grandes nomes, como o próprio Senna.
Hoje, para mim e tantos amigos, rememorar seus feitos não é só mergulhar de cabeça nas “piras loucas” que ele aprontava nas pistas, como naquela loucura de Adelaide, em 1985, por exemplo. É voltar em tempos em que a F1, por mais cara que ficasse, ainda assim era território de homens metidos a loucos que brigavam num grid de 26 botas em busca da glória, dividindo curvas, errando como humanos e escrevendo sua passagem com orgulho de dizer aos netos, algum dia, que dividiram pista com gente do naipe de Senna e de tantos outros.
E hoje, 25 anos depois daquele fim de semana que assustou Rubinho e arrebatou Senna e um sonhador simples chamado Roland Ratzenberger, pode-se dizer que em meio aos pachequismos da data, é possível agradecer ao Béco por ter me inspirado a querer estar por dentro deste mundo. É possível reverenciá-lo pelos feitos fabulosos que fizera em tempos selvagens e, ainda, é possível colocá-lo no patamar de outros grandes, estudá-lo mesmo em seus defeitos e longe de suas “fantasias ufanistas” sem perder a grandiosidade deste nome.
O garotinho de três anos que o viu livrar-se de três adversários para tomar a ponta de um GP sem entender muita coisa hoje sabe que teve muito mais. Sabe que existe um mundo todo além da F1 que não é obrigação de ninguém saber de tudo, mas ao menos não transformar essa reverencia em ufanismo alucinante.
Ayrton Senna é um gigante, um mito, talvez até demais para ser chamado de herói (admito), mas uma inspiração para quem quer entender o tamanho do automobilismo para o mundo e para o Brasil, cuja história rica não se resume a ele, mas passa por Piquet, Fittipaldi e por outros sonhadores como Pace, Boesel, Gugelmin, Moreno, Barrichello, Massa e tantos outros.
Já vão 25 anos… e para Senna fica um gigante “obrigado”. A vida vai seguindo e sua memória segue sendo espalhada. Enquanto isso, nós, aqueles que ainda acordam nas madrugadas, manhãs e tardes de domingo para mais um GP, seguem sendo “alienígenas” no mundo de “normais”. Mas aficionados pela velocidade, pela história de glórias, choros e desafios de uma F1 que procura um novo Senna (sem nunca encontrar), o estuda entre possibilidades e imaginações e o tem como um entre os grandes de mundo louco de seis décadas de aventuras.
E para terminar de vez, entre reverencias e gratidões, um termo batido: “Para sempre, Ayrton!”