Uma certa feita, ainda a frente dos trabalhos na FAJOMA (Fanfarra da EEB Padre José Maurício), fui convidado para uma reunião importante com outros amigos-irmãos da música escolar. Eu, a Jaque, o Zeca, a Mônica, acho até que o Gilian estava lá, não lembro todos, admito.
Fomos até a casa do gigante maestro e músico Edson Ricardo, uma das personas mais influentes do meio das bandas escolares que conhecíamos. Havia um objetivo em mente: a criação de uma instituição que congregasse todas as corporações musicais escolares em uma única entidade, que permitisse a profissionalização, capacitação e troca de experiências e conhecimentos entre os grupos.
Lá iria nascer o embrião do que seria, tempos depois, a ABBAFE Blumenau – Associação Blumenauense de Bandas e Fanfarras Escolares – tendo o próprio Edson como presidente e eu, com muita honra, assumindo naquela feita a função de primeiro-secretário, representante das bandas da rede estadual de ensino na cidade.
Mas quem era eu lá naquele meio? Só um aluno apaixonado fervorosamente pela música e pelo mundo das fanfarras que já militava há algum tempo nos corredores da FAJOMA. Foram quatro anos de surdo-moor, seis anos de bombo e (seriam) outros sete anos a frente da corporação. Sem formação musical, sem entender por completo pautas e notação, apenas com uma boa dose de interesse e vontade de fazer acontecer.
A essa passagem, claro… rendo graças e reverencias ao grande mestre Gian Carlos Candido, nosso iniciador. O cara que é meu ouvinte até hoje, amigão, conselheiro e, mesmo com meus 32 anos de idade, ainda conseguindo puxar minha orelha vez em quando (risos).
No entanto, entre nós naquela tarde também estava ela: a sumidade, aquela que poderíamos chamar de “sua excelência, a maestrina”, a mulher que conheci, por vezes, como a “regente do Anita Garibaldi” e que 10 em 10 músicos de bandas e fanfarras tomava como exemplo, espelho, inspiração, referencia para seguir militando na corporação que tocava.
Bia parecia colocar “medo” quando olhava fixo aos seus comandados, mas as vezes a música pede seriedade nas suas várias peças. Eu a observava de longe, admirado: tinha um verdadeiro arsenal nas mãos no educandário tradicional da Itoupava Central. De tão valente e milimetricamente montado, chegou ao tento nacional, tornou-se a banda a ser “batida”, ou espelhada.
Marcos Melchioretto, que a sucedeu e que tive o prazer de conhecer, acho que sabe bem do que digo quando falo do Anita. A obra de Bia, a casa da Bia, onde a gente certamente a veria passar alegre, sorrindo, esquecendo aquela tal seriedade da música.
E Bia estava naquela tarde diante de mim, e eu diante dela. Ela e Edson olhavam com uma feição orgulhosa, embora eu confesso nem saber se merecia tanto. Interagiam comigo como se fosse um velho amigo, um conhecido antigo, até que Bia me roubou as reações com uma simples frase que mexe comigo até hoje…
“Nós sempre estivemos te observando, André!”
Sentiu a sutileza dessa frase? Vinda dela, aquela mulher grandiosa de espírito e música, que vivia melodias todos os dias, estava apontando o dedo pra mim com o mesmo olhar afável que uma marchinha de Ernst Mosch faria em seu momento de ouvinte. E eu? Merecia tanto?
Eu era aquele garoto agarrado as cordas dos desfiles, esperando com tensão febril as fanfarras passarem. Queria ser “malabarista de bombo” (como chamava os movimentos evolutivos das baquetas) e me perguntava por que a minha escola não tinha fanfarra, queria tanto estar em uma, sentir as mesmas sensações na pista, o nervosismo, o frio na barriga, a marcação cerrada passo-a-passo.
Aos 11 anos, enverguei a farda da FAJOMA. Lá cresci, vivi histórias, levantamos troféus, desfilamos nosso passo, crescemos. Fomos vistos, se tornamos referencia, tivemos nossos altos e baixos, perdas e ganhos. E, um dia, tudo aquilo que ajudei a construir estava na minha mão. Eu era o regente, eu era a “Bia” da minha então ex-escola.
E nesta de ser teimoso comigo e minhas capacidades, fui a luta. Perdi a conta dos estresses, natural quando se coloca uma turma de adolescentes com os ímpetos a flor da pele diante da responsabilidade que tinham. Não era como no meu tempo, mas fizemos a hora, talvez escapando a dinâmica do som aqui e ali, mas sem falhar no propósito. E muitos dos meus alunos, até hoje, me fazem abrir o sorriso de ver onde chegaram nas suas vidas.
Quando Bia disse aquilo, isso depois de anos de apenas “olás” informais em desfiles e festivais, era como olhar para trás e perceber que tudo que fiz, como aluno e regente, estivesse sempre com o olho de alguém mais em mim. O do Gian? Sempre esteve comigo, era o primeiro a quem recorria e recorro até hoje, ele sabe.
Mas o de Bia… era eu e mais alguns tantos, vários, espalhados por esta cidade e que levavam consigo a bandeira de suas escolas em cada música. Ela olhava a tudo, dava seus conselhos amavelmente, a tanto que chegava a ser confortável ouvi-la quando ela me pedia, por vezes, pra “cuidar do som e da dinâmica, pois estava alto demais”.
Querida, tão querida… e eu nunca fora seu aluno, apenas um desses “metidos” que queria mostrar que sua escola tinha cartaz mesmo com a incompreensão de tantos. A via nos desfiles, nos concursos, nos festivais, sempre com a mesma expressão altiva e, ao mesmo tempo, feliz. Ela estava diante do que gostava, eu também, os seus pupilos e maestros amigos também. Coisas da música.
Sai daquela reunião sorrindo de orelha a orelha, prometendo pagar pizza num próximo encontro. Infelizmente, a evolução da minha vida na comunicação me levou pra longe das fanfarras. Sai sem mais pique, mas Bia e esse universo todo jamais saiu de mim, jamais.
E a pizza? Essa não veio… até hoje (me cobrem por isso!)
Diante da Banda Treml, a centenária de São Bento do Sul, foi meu último encontro com Bia. Aquele abraço afável, a conversa informal sobre a vida, a mesma Bia que esteve sempre me observando, duma forma ou de outra, nesses caminhos da vida, como se cada estrada fosse um pentagrama e nós, suas notas musicais.
E agora, onde está Bia? Eu não sei, não era para ser, mas… talvez fosse para ser. Não sabemos a hora que o regente, na eminencia de terminar nossa música, fecha as mãos em silêncio. Ele indica, a gente para. O de Bia indicou, ela parou, e todos nós silenciamos em reverencia a ela.
Enfim, de alguma forma, percebo que ela jamais vai deixar de fazer aquilo que nos acostumamos mais a sentir do que a ver: nos observar. Talvez, nestes sonhos recheados de semibreves, semínimas, colcheias, fusas e claves, a gente acaba ouvindo seus conselhos e recebendo um sorriso e um abraço tão afável quando o som.
Bia sempre nos observou
Bia está sempre nos observando
Bia sempre vai nos observar.