Hoje, 18 de maio… meu aniversário. Data feliz, claro. Mais um ano de vida, mais um de experiência, naturalmente…
Data feliz para mim, talvez para alguma outra criança neste mundo louco que também esteja soprando velinhas num dia como hoje. Sorrindo, feliz, de mãos dadas aos seus pais, cercadas dos amiguinhos e pronta para continuar seguindo a vida adiante. Evoluindo, descobrindo, aprendendo, crescendo.
Sortuda esta criança. Ela não passa o que tantas outras passam na mão de fascinoras, inescrupulosos, lixos sociais que as violentam, as agridem, as abusam e tantas outras formas de violência. O dia 18 de maio, no calendário nacional, nos lembra desta triste realidade que parece distante, mas pode estar acontecendo há algumas quadras da sua casa.
E por que o dia 18 de maio? Sabe, se um dia ser pai de uma linda moça, não vou negar a minha filha o nome de uma criança que queria viver muito além dos seus 9 jovens anos, ceifados de maneira tão cruel e tão odiosa que é quase impossível descrever aqui. Este nome ainda é motivo de arrepios e tristeza quando se lembra da sua história, bem como de medo, ameaça e silêncio nas esquinas de Vitória, a bela capital do estado do Espirito Santo, no sudeste brasileiro.
Foi há exatos 44 anos, nesta data, que uma localidade da capital capixaba que a pequenina Araceli Cabrera Crespo não voltou mais para casa, nunca mais voltou a vida, e sua morte violenta e bárbara virou um alerta constante a estes crimes tão odiosos a cada ano e a cada 18 de maio.
A garotinha nasceu e viveu tão brevemente cercada do perigo. Apesar do clima tranquilo da casa onde vivia com o pai, o eletricista do porto de Vitória Gabriel Crespo Sanchez, o irmão Carlinhos e a mãe, a boliviana Lola Cabrera Sanchez, não era, exatamente, o ambiente ideal, como contam fontes que pesquisaram sobre o caso. Fala-se que dona Lola, viciada e traficante, aproveitava-se da inocência da menina para transportar drogas entre seus clientes nas redondezas.
Do outro lado da corda, o perigo que cercava a menina ligado aos perigosos grupos de viciados e toxicômanos (como eram chamados, elegantemente, os drogados naqueles idos) que se reuniam em um velho casarão na localidade de Jardim dos Anjos para orgias entupidas de LSD, cocaína e álcool. A maioria das vítimas deste grupo eram pequenas crianças, meninas inocentes, aliciadas e feitas de brinquedo na mão dos ditos delinquentes juvenis.
No meio deste grupo, dois nomes se destacam: Paulo Constanteen Helal e Dante de Brito Michelini (Dantinho), filhos de duas das mais influentes famílias de Vitória e que há algum tempo eram apontados pela polícia como líderes do bando. Eram os mais atraídos pelas menininhas que orgulhavam-se em deflorar e atacar sem pudor nem razão. Uma nefasta zorra sem freio, protegida pela impunidade do alto escalão familiar.
Era neste ambiente perigoso e promiscuo que Araceli tentava ser criança. As rotinas diárias de aula eram complicadas, especialmente na hora de voltar para casa, já que os horários dos coletivos que ali passavam a faziam chegar em casa tarde demais. Dona Lola pedira, então, a diretora do colégio onde ela estudava que a soltasse mais cedo para tomar outro coletivo horas antes, para não chegar em casa tão tarde.
Ela começou a seguir o combinado, ao menos por alguns dias. Foi quando no dia 18 de maio daquele quente 1973, uma sexta-feira, Araceli saiu do Colégio São Pedro para não mais voltar à casa. A garotinha havia sumido, desaparecido, sem rumo nem pista. Os pais de Araceli não sabiam o que fazer (ao menos Gabriel). A polícia estava sem um fio para destrinchar a meada, a apreensão tomava conta do ar.
Foi então, quase que inocentemente, no dia 24 de maio, um garoto caçava passarinhos num terreno baldio aos fundos do Hospital Infantil Menino Jesus quando deparou-se com um estranho cadáver no meio do matagal.
Assustado, o garoto chamou seu pai, que logo deu o veredito: Era o corpo de uma criança. Seria Araceli?
Arrastou-se dias de exames e verificações, Gabriel convencera-se que era o corpo da filha por uma marca de nascença numa das pernas, já dona Lola não queria acreditar que aquele monte de carne desfigurada era sua amada filha (ou burro de carga favorito para ela, mesmo que inconsequentemente, nos tráficos da vida).
Pessoas diziam que era ela, outras afirmavam que ela estava viva. Afinal, quem estava certo?
Foi assim até o cachorro de Araceli, chamado curiosamente de Radar, agir autenticamente como o aparelho de navegação que não deixa perder-se ninguém. Ao ser levado ao Instituto Médico Legal de Vitória, o cãozinho não perdeu tempo e correu para as gavetas do necrotério. Estava apontando para a que estava a sua dona, onde estava Araceli.
E, combinado com as provas cabais dos peritos, não havia dúvidas: Araceli estava morta. O estado do corpo era terrível, quase irreconhecível. Os restos da menina estava repleto de traumas, sendo os mais graves na cabeça. Nos seios e genitália da garota marcas de dentes, o rosto desfigurado com algo que, a priori, era similar a ácido. No organismo, barbitúricos aos borbotões, uma das prováveis causas da morte.
Pouco sobrara, mas o que sobrara já era o ponto de partida, ao menos, para buscar justiça. Mas qual justiça? Achar os culpados poderia ser fácil ou difícil. E se fosse, seriam punidos?
Os acusados foram resvalando de um lado para outro até chegar no que poderia ser dito acima de qualquer suspeita: dois herdeiros e o pai de um deles de duas das mais influentes famílias de Vitória. Eram exatamente Paulo Helal e Dantinho Michelini, somando-se a eles o pai de Dantinho, Dante de Barros Michelini, que fez de tudo para dificultar e acobertar o crime do filho e de seu amiguinho de farra, especialmente na ocultação do corpo numa geladeira do bar da família.
Chegar ao trio e ao caminho certo não foi fácil, e o caminho foi repleto de desvios, corrupção, mortes misteriosas e negativas descaradas diante das câmeras. No rastro das mortes suspeitas, um sargento da polícia (Homero Dias, que investigava o caso), um traficante (José Paulo Barbosa, vulgo Paulinho Boca Negra, que sabia quem matou o sargento), um toxicômano (Fortunato Piccin, apontado por Dante Michelini como o assassino), o tio de Dantinho (Jorge de Barros Michelini, que ameaçou contar tudo o que sabia), um porteiro e um mecânico de confiança de Paulo Helal.
Some-se a isso subornos e influências externas as investigações para a morte da menina tornar-se uma novela sem fim. Ou quase. Foi somente através de uma CPI aberta pelo então deputado Clério Falcão que Dante, Dantinho e Paulo não escaparam da dita espada da justiça. Enfim, os fugitivos pelas vias tortas da lei estavam a caminho de um julgamento.
O julgamento teve lugar em 1977, terminou apenas em 1980, depois de dias e dias, pestanas queimadas e cafés tomados avaliando depoimentos e detalhes do exame do corpo de Araceli. Ela já era adubo em terra, dolorida lembrança para a família e para a opinião publica de Vitória, e a justiça era uma duvida.
Uma duvida que parecia certeza na condenação dos réus, saída naquele primeiro ano da nova década. A sentença, no entanto, virou cumprimento em liberdade, beneficiados por uma das tantas brechas da lei brasileira. Os anos passaram, chegou 1991, e o resultado: crime prescrito. O trio estava livre, impune, e as dúvidas ficaram no ar.
Ainda hoje, nas esquinas de Vitória, o caso dá arrepios. Tem quem não se arrisca a dar palpite, a comentar qualquer nasca que seja da história com medo de represália. O escritor e jornalista José Louzeiro tentou colocar a história em um fabuloso romance-reportagem intitulado Araceli, Meu Amor, foi ameaçado de morte e o livro proibido. Mencionar o fato entre os capixabas da capital ainda é tabu que pode ser pago com a vida, como a os inocentes apagados nos anos 70.
Os anos seguem passando, Araceli não ficou como a única vitima de fascinoras pervertidos que se espalham pelo Brasil e, também, pelo mundo. Em algum lugar deste planeta, outra criança está seguindo este caminho sem amparo nem coibição das autoridades, perdida nas mãos alheias que as cobiçam para façanhas e orgias.
Ainda que o tempo passe, outros 18 de maio como este irão se suceder. Araceli, como disse, será o nome de minha filha se assim o destino permitir. Uma lembrança que deve manter-se acesa em nome das crianças que tem a infância cortada bruscamente, a vida freada precocemente, sem direito a defesa ou a um simples grito de socorro.
Lembrem-se de Araceli. Ela não é mártir, é apenas uma criança, uma vitima do sadismo cruel que não tem lugar na terra.
André,
Parabéns pela passagem de seu aniversário hoje 18/05. Muitas felicidades, sucesso e principalmente saúde.
Mais uma bela postagem de um triste episódio da menina Aracelli.
Foi muito triste esta situação e que ainda é lembrada com muita tristeza.
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história.