Noite de 15 de novembro de 2017. Depois de aplicar 3 a 1 contra o Fluminense dentro de casa, o Sport Club Corinthians Paulista alcançou o sétimo titulo brasileiro. Uma história construída com excelência num campeonato nacional em que gols e boas partidas estão em falta. Título merecido, diga-se, venceu o melhor e não se pode mentir.
É o segundo título em três anos, o terceiro na década, fruto de um trabalho misto de técnica e publicidade que mostrou-se pioneiro no Brasil, fazendo do clube uma espécie de grife para alguns, utilizando esta ferramenta em favor do seu elenco e de sua saúde monetária, sendo uma espécie de exemplo para outros clubes. E não é mentira, em aulas de marketing na faculdade de jornalismo, o Corinthians era case de aula e exemplo de trabalho com uma marca já consagrada entre seus torcedores.
O Cortinthians, assim como o futebol brasileiro, é parte integrante de elementos folclóricos que fazem do nobre esporte bretão nacional algo que desperte a curiosidade nos contos que escreveu desde os tempos de Charles Miller. Os títulos, os jeitinhos, as viradas de mesa e maracutaias, coisas que enriquecem este arquivo, sendo algumas motivo de orgulho ou de vergonha, claro.
Cada clube tem o seu, claro, e o alvinegro paulista não seria exceção. Tanto que neste ano permeado em números 7, a lembrança de alguns corintianos navegou para quatro décadas atrás, quando, teoricamente, a história de sucesso do clube teve seu momento de consolidação depois de anos de frustrações. Foi em meio a um tortuoso jejum que entrou nos anais na história do futebol nacional, ilustrado por todos os elementos e fatores que explicam (ou não) como o então time do povo se transformou numa força dentro do futebol brasileiro.
E, entre as folclóricas passagens, a história do fim de um jejum é uma daquelas que, até quem não é corintiano e navega nas histórias do futebol brasileiro, não cansa de ver e rever quantas vezes for. Estamos de volta a 1977, numa noite de história sem precedentes no futebol brasileiro.
São Jorge revisited
Era dia 13 de outubro. Diante do túnel de entrada ao campo, dividiam o espaço dois clubes de histórias distintas diante da disputa do título máximo dentro do estado: De um lado, o bem montado e entrosado time da Ponte Preta, vindo de Campinas para um terceiro jogo que trouxesse, enfim, o sonhado título profissional que a macaca sonhava de olhos abertos. No elenco, a dupla Dicá–Rui Rei era a vedete do clube e o temor dos demais times.
Do lado, estava um Corinthians diante de uma possibilidade que não chegava desde 1974, em busca de algo que não vinha desde 1954. A perseguição pelo título paulista passara de um jejum esportivo para uma espécie de alegoria artístico-publicitária, responsável por mobilizar torcedores de todas as pontas da vida social: dos presidiários do Carandiru aos vultos da música mais marcantes, como Paulinho Nogueira, Adoniran Barbosa, Elis Regina, Toquinho e Wilson Simonal, que exploravam a agonia corintiana em versos musicais, alimentando uma esperança que parecia nunca se concretizar.
Alias, antes de entrarmos em campo, é preciso entender como o Corinthians chegou ao ponto de uma pequena nação dentro de São Paulo. Como um clube que, com 23 anos de ilusões na conta, conseguia arrebanhar uma massa de torcedores e entrar no imaginário popular como o significado da tal frase quem espera, sempre alcança. Para tanto é preciso voltar a 1954 e seguir a trajetória da fiel e seus seguidores até a feliz data.
Naquele meio de anos 50, São Paulo ainda vivia as celebrações do Quarto Centenário, que mexiam com toda a cidade. Embalados pelos floreios do acordeon de Mario Zan e seu hino da festa, o Corinthians de Oswaldo Brandão entrava no Pacaembu precisando apenas do empate contra o Palmeiras na penúltima rodada contra o Palmeiras para garantir o título. Luizinho foi o autor do primeiro tento corintiano, que ainda teve de aguentar a pressão alviverde após o gol de Nei, no segundo tempo.
O empate veio e o título iria para o Parque São Jorge. O que a torcida não poderia desconfiar é que seria a última vez por algum tempo que veriam o time do coração faturar um caneco paulista. O período do jejum foi mais sentido ainda nos anos 60, quando o time alternou atuações pífias e medianas às derrotas uma barreira chamada Santos Futebol Clube. Para muitos, Pelé foi um dos grandes responsáveis pelos revezes corintianos na década, que duraram até 1968, quando o time quebrou o tabu de 11 anos sem vencer o peixe no Paulistão. A vitória por 2 a 0 significou o fim de um fardo, mas não de uma sina.
Anos 70: Uma massa dona do time e a arte poetizando a saga
Na década seguinte, o panorama do Corinthians renova-se com a chegada de novos craques ao Tatuapé. Rivelino, o reizinho do parque é um deles e, junto dele, uma massa fascinada pelo clube e sua história de missão impossível junta-se em torno do time. Algo que por certo espanta vindo de uma equipe que sente falta de títulos há algum tempo mas que vira tema de música, poesia, crônica, tema de tudo e mais um pouco que reconte a saga fantástica e um tanto dolorosa da massa de torcedores que, segundo Washington Olivetto, era a única dona do próprio time.
Em 1974, o primeiro sinal do que poderia ser o fim de uma tortura eterna virava fumaça no gol de Ronaldo, dando o tom de uma perseguição eterna diante do eterno inimigo, o Palmeiras. A massa de torcedores cativados pela história aumentava ainda mais, seguida das composições musicais que pareciam trazer acalanto a equipe. Este universo quase literário construiu no universo do futebol brasileiro uma epopeia com um enredo que só se explica pela paixão de seus seguidores, desde o mais humilde ao de mais alto escalão, contando por si a sua história nesta perseguição.
Dois anos depois, outro momento poético que talvez se conte bem em uma data apenas: 5 de dezembro de 1976, quando cerca de 70 mil torcedores corintianos literalmente invadiram o gigante Maracanã para empurrar um tima ainda perseguido pelo jejum de já contados 22 anos.
A partida contra o Fluminense, válida pelas semifinais do Brasileiro daquele ano, foi mais uma destas páginas poéticas vividas pelo Corinthians naqueles idos, permeada pelo mesmo enredo de sofrimento. 1 a 1 no tempo normal e uma decisão chorada nos pênaltis, vencida por 4 a 1. No fim, o título não viria, cairia para o lado do Internacional em Porto Alegre, voltando a realidade do vazio incômodo na sala de troféus.
Mas viria 1977, algo maior estava reservado. Uma história que consolida todo um universo de folclore e que explica a fascinação de uma massa pelo seu time.
Histórias de uma noite de quinta-feira
Depois de uma verdadeira maratona de um ano inteiro, eis que o destino empurra o Corinthians para uma nova decisão do Paulista. Destino mesmo, pois analistas da época não davam o time como favorito. Era uma equipe determinada mas não forte tecnicamente, perdendo em alguns quesitos para equipes como a própria adversária da final, a Ponte Preta, em seus melhores anos.
Mas em linha geral, era um detalhe apenas para o Corinthians daquele ano. No banco de reservas, o comando de um velho conhecido era a grande esperança de reaver um título que não vinha há 23 primaveras: ele mesmo, Oswaldo Brandão, o comandante de 1954 que ainda tinha prestígio nos lados do Parque São Jorge mesmo depois de, três anos atrás, ter roubado o velho sonho corintiano no comando do Palmeiras. Vivendo o drama da perda do filho, encontrou no time carente de um comandante uma espécie de família onde pode demonstrar seus dotes de estrategista.
A equipe contava com ídolos que percorreriam eras no futebol brasileiro com grandes méritos. O gato Tobias no gol e uma linha de avantes que marcaria época no Tatuapé: Wladmir, Vaguinho, Basilio, Palhinha, Geraldão e outros. O encontro derradeiro com a macaca começava no Morumbi, no dia 5. Vitória de 1 a 0 num gol respingado de Palhinha, na dividida com o arqueiro ponte-pretano Carlos. Voltar de Campinas com o caneco era possível mais difícil, e assim o foi adiado com a derrota por 2 a 1 no Moisés Lucarelli.
O capítulo derradeiro seria, sem remédio, no dia 13 de outubro. Ali, algumas várias histórias que cercaram todo o arcabouço de fatos vindos desde 1954. Torcedores jovens que herdaram dos velhos que presenciaram o título do Quarto Centenário, personagens celebres da cultura brasileira, poetas, cantores, políticos, todas estas coincidindo, na TV ou in loco, no Cícero Pompeu de Toledo, a casa do São Paulo que presenciava um de seus maiores públicos na história.
Jogo quente, de bastidores ainda mais fervorosos. Nestas tantas nuances a história de que preparava-se a compra do árbitro da partida, o histórico e durão Dulcídio Wanderley Boschilia, que não sabia da tramoia que lhe era costurada a suas costas. O incauto Dulcídio entrou no campo sem saber que, segundo Flávio Prado, uma mala branca estava a caminho de sua casa. Se aceitara ou não, ele jurara até a morte (em 1998) que não ia meter a mão na gaita.
O apito, a bola começa a rolar, junto com elas as histórias e expectativas de cada um. Tempo quente, a pressão alvinegra era violenta mesmo diante de uma equipe forte tecnicamente como a Ponte Preta. Até que em um lance polêmico, eis que uma das estrelas do time campineiro, Rui Rei, viu o sangue subir aos olhos em um sonoro palavrão direcionado a Boschilia. O árbitro trucadão, policial militar e um dos mais responsáveis do apito brasileiro, levantou raivosamente o cartão vermelho após o amarelo. Era resultado da mala branca? Vá lá saber…
O jogo tenso seguiu deste jeito até próximo do fim, 36 minutos do segundo tempo, em um córner alto o bate-rebate acabou na trave e na cabeça de um zagueiro antes de parar nos pés de Basílio, na entrada da sala da Ponte Preta. Era um tiro de direita desajeitado que morria nas redes irrompendo a explosão de todas as gerações presentes no estádio e diante da TV. Era o fim, mesmo restando 11 minutos era o fim do drama romantizado, historizado, poetizado, imortalizado.
A poesia, por conta de Osmar pai da matéria Santos:
Reminiscencias e reflexões
Passados 40 anos, algumas conquistas mais e outras histórias escritas, a história do Corinthians registra sempre com um saudosismo exageradamente merecido aquele dia de 1977. Há algumas considerações que, no entanto, são necessárias para tentar entender o tamanho desta história para o futebol brasileiro, fato que transcende qualquer arquivo do nobre esporte bretão brasileiro entre jornalistas e pesquisadores históricos, independente dos times que torcem.
Entre as histórias do futebol nacional, a passagem emocionante do Corinthians naqueles 23 anos não chega a ser comparável com o jejum quase eterno aos 108 anos sem título do Chicago Cubs na World Series em 2016. Não se compara uma centena a duas décadas e três anos, no entanto o jejum foi o suficiente para criar em torno do coringão a imagem de persistência e sina com final feliz que torna qualquer história deste estilo motivo de grandes composições, poesias e histórias inspiradoras para torcedores e entusiastas.
Alias, histórias como estas não faltam em qualquer clube brasileiro. Não seria diferente com o Corinthians, que viveria outros grandes momentos: o primeiro brasileiro (1990), o primeiro mundial (2000), a primeira Libertadores (2012) e por ai foi. Ao chegar aos 40 anos depois, na recordação de histórias com a dose necessária de sofrimento, pode-se notar, talvez, que a fiel enlouquecida vê-se cada vez retemperada por estes momentos que forram a sala de troféus na Fazendinha.
Seja como for, a história do Corinthians foi outra depois de 1977, um ano em que as poesias e romances escritos sobre uma sina quase eterna culminaram num momento único no futebol brasileiro, cheio de seus personagens, os que jogaram e que viram onde estiveram, o fim de 23 anos de alegrias, tristezas, músicas, pensamentos, temores, enfim, 23 anos de todo e qualquer sentimento que permeou a imaginação da fiel durante sua espera.
E a cada nova batalha, todo corintiano parece cantar com a velha esperança de 1977, a canção de Simonal…