Eu nunca mais vou entrar num teatro da mesma forma…
O teatro: a grande casa de espetáculo.
Uma tarde, cadeiras silentes apontadas diante ao palco vazio, onde apenas uma névoa de poeira forma um redemoinho discreto no tablado.
Caminho passos lentos, deixando-me interagir com o gigantismo das paredes altas e da altura do mezanino por sob a grande nave.
Tudo vazio, tudo calado.
As palmas vem de vultos de personagens passados que ali habitaram as paredes, fazendo lentamente as longas cortinas da cena furtivamente balançar como se, ali, um fantasma entrasse comigo.
Caminho pela lateral. Não mereço o corredor central.
A casa dos artistas. O berço da fauna maior da arte do corpo, da música. O jubilo de dias e noites que aquela nave decolara no extasio popular ante as grandes marcas lá deixadas.
Lembro dela… É o lugar dela.
Como um animal dócil, maleável e leve, lá ela habita. Entre as incompreensões de bastidores e o deslumbrar dos refletores, por hora enegrecidos no vazio elétrico daquele momento.
Ela é um jubilar terno e doce que lê a alma das ruas e as transporta para dentro daquelas paredes, as transformando em clássicos que rompem o status quo da propalada arte “padrão” para o olhar racional, cru e, as vezes, dolorido.
Ela baila sozinha deixando os pés memorizarem as posições no assoalho gasto de tantos atores e atrizes ousados e bravos.
Baila sem ser vista, sem ser notada, tendo a plateia a contemplar nos rodeios de textos e movimentos coordenados pela mente em foco.
A cintura se perde em curvas. O rosto larga a crisálida de vidro que ocupa sua face diariamente para ser uma mulher das cenas.
A mãe que carrega a doce flora pela mão, naquele momento, é uma simples estrela cadente cadenciando os a sua volta no mesmo universo diante de um universo a parte.
Grita! Esbraveja! Explode em movimentos elétricos, intensos, misto de sensualidade artística e vigor físico que dá vida ao drama, ao peso das cenas, a verdade do texto.
E a plateia vibra com ela, respirando ofegante e sorrindo um raio solar após a grande cena.
Bravo! Bravo! Bravíssimo! Gritam os nobres de coração. Os que entendem sua arte, entremeada com musicas de apoteose ao fim do espetáculo.
E quando ela olha ao lado, sentado a beirada do palco… Não era ela.
Não tem ninguém. Não há plateia, viva alma e nem mosca solitária.
Sou apenas eu, o cronista, hipnotizado pelas luzes do pôr-do-sol furtivas, entrando pela porta central da nave.
Tudo aquilo não me pertence. Não pertence ao poeta.
As vezes, aquilo é tomado pela nobreza podre que vê a cultura com seus olhos seletivos e vazios.
Excluem meus escritos, fecham a arte a grupos petrificados e imersos em si.
Me proíbem, e me proíbo.
Ela me olha em algum lugar, mas naquele palco, ela não me olha.
Escorre uma lágrima, de um coração despedaçado por um tempo de vida perdido.
E ela, vive o ápice de sua criação, imersa num ego necessário para renascer após tanto lhe despetalarem no palco da vida.
Este, lá fora, cru e frio, onde as tragédias e alegrias são mais reais do que qualquer texto shakesperiano ou celsoriano.
Não é meu mundo! O que faço aqui?
A arte deslumbra, e por isto sou um teimoso poeta de todo dia escrevendo versos e os espalhando para qualquer um ler e, quem sabe, entender o mundo e meu coração.
Mas as portas, sempre fechadas, hoje estavam abertas. E Heinz Geyer não se importou de me ver entrar.
Sua imagem de pedra parecia me entender mais do que estes falantes da arte que julgavam saber do que queria eu expressar.
Meus versos, minhas sensações poéticas…
Meu amor quebrado, arrebentado, largado e pisado por ela.
Ela não está ali, mas as cortinas balançam e alguma cadeira abre-se sozinha no meio da nave.
Assombração? Não, ilusões de uma mente que precisa limpar-se e sair dali.
Tomo o corredor central, e a luz do sol enfraquece-se como o fim de meu ato escrito.
Sinto uma brisa, e apenas as cortinas se movem como um fantasma de uma ópera perdida.
E a nave, fica para trás de minhas costas. Vou versar lá fora, onde o mundo me permite.
Quanto a ela? Será que me olha ou olha a si, envolta em seu ego?
Deixai ela! O amor pede mais, e agora não é hora de amor
Quem sabe uma raiva comigo mesmo, um inconformismo. Isso vai passar, como tudo passa.
Mas deixo um papel no tapete de entrada, limpo a lágrima e me vou.
Boa tarde, herr Geyer.
Adeus a ela.
À Carlos Gomes, um dia volto aqui.