Garcia-Jordão, por Godofredo e seu neto

Escrever algo sobre meu avô sempre suscita alguma emoção guardada naquele canto especial do coração. Godofredo Heiden era um ser gigante, daqueles cuja história de vida, excluindo-se algum desvio de conduta, dava alguns livros e intermináveis rodas de café com amigos e apaixonados pela história de Blumenau e, sobretudo, do Reino do Garcia.

E quem dera se esse café fosse bem no meio do salão mais histórico dessas bandas? Ah, como é bom falar do Caça-e-Tiro Garcia-Jordão. Se aquelas paredes do salão azul da Rua Santa Maria pudessem falar, iam contar cada coisa pra nós. Dos bailes épicos as mais emocionantes disputas esportivas. Encontros de amigos, festividades, a legítima confraternização social do Reino que acontece sempre por lá já pra 140 anos.

(Reprodução/CSRCT Garcia-Jordão)

Sim, neste fim de mês, o CSRCT Garcia-Jordão, o segundo mais antigo de Blumenau, chega a esta marca natalícia com vigor, apenas com o salão silenciado por conta da pandemia. Nascido num 30 de maio em 1880, o Schutzenverein Garcia-Jordan era apenas a segunda iniciativa deste porte no ainda incipiente município, perdendo em idade apenas para o CCT Ribeirão Itoupava, três anos mais velho.

E como todo caça-e-tiro, fora os grandes bailes que configuravam-se no grande acontecimento social dos fins de semana, as atividades esportivas de caça e a prática do tiro e de outros esportes típicos – como bolão, skat e outros – encontravam ali a sua praça de encontro dos que buscavam a emoção nestas disputas. Cada esporte, como mandava a tradição, com seus reis, rainhas, damas e cavalheiros eleitos ano a ano, aclamados quase como celebridades entre a multidão.

O Garcia-Jordão era isso, e mais ainda: por sua importância e tamanho, é, até hoje, um simbolo desta tradição bem guardada e sobrevivente a todas as dificuldades, como as guerras que forçaram o trancar de suas portas na aversão nacional à cultura germânica presente nas raízes blumenauenses. Sobreviveu, viveu tempos dourados e, hoje, mesmo que pareça para muitos um ambiente de “terceira idade” ou “tipicamente raiz”, traz boas recordações e curiosidade dos mais novos, alguns levando adiante a bandeira prateada da agremiação por outra centena de anos.

Godofredo no stand de tiro (Arquivo Pessoal)

E nessa ciranda, agora suspirando de saudade, entra meu avô. Remexendo por mais uma vez as fotos e lembranças guardadas em meu quarto, passa todos os filmes possíveis na cabeça nesta roda de recordações. Não sei, ao certo, quando Godofredo entrou de sócio no Garcia-Jordão, mas ao deixar este plano – em outubro de 2014, aos 101 anos – era considerado o mais velho sócio vivo, mesmo que remido, mas uma das figuras mais conhecidas do salão em todos os tempos.

Não falo nada disso me inflando. O que digo é por lembrança ao recordar, vividamente, das vezes que ele visitava o caça-e-tiro já bem depois de largar as carabinas que lhe renderam tantas medalhas. Eram amigos, conhecidos de outros anos que não perdiam tempo em parar na mesa em que sentava para um aperto de mão, um abraço, um breve momento de lembrança, mesmo que ele demorasse a lembrar quem era o amigo ou amiga que o cumprimentava.

E falar em medalhas, tá certo, ele não era um colecionador delas, como tantos ainda vivos ostentam nas festas de Rei ou nos desfiles da Oktoberfest. No entanto, as poucas que ele guarda tem um valor enorme. E uma delas me enche de orgulho, não só pelo significado, mas porque nenhum Zendon, Hort, Riffel, Goll ou Schmidt as tem na coleção: a de Rei Sênior do Centenário.

As faixas cruzadas de Rei do Alvo de 1983 e Rei Sênior de 1980 (Arquivo Pessoal)

Esta guardada a sete chaves, numa caixa simples de papelão junto das outras medalhas e ao lado da faixa que é sua e, segundo o dito daquela época, só poderá ser passada adiante no próximo centenário (2080). Parece simples pra você? Amigo, é muito mais do que um metal banhado em dourado ou uma faixa de pano, é um pedaço de história, material, verdadeiro, pedaço de uma história viva, imortal, escrita por ele e por tantos dentro do velho salão azul.

E, por sinal, este valor a um passado construtor da história de nossa cidade, de nossa comunidade, é o que tem desaparecido nas curvas do dia-a-dia. As novas tecnologias e formas de convivência social parecem esvaziar as tradições em alguns lugares, mas não o salão do Garcia-Jordão. Ele não parece disposto a ficar vazio, ao menos agora pela força do momento, mas quando há um evento – típico ou musical – lá vai mais uma história ser escrita dentre tantas cantadas, atiradas, dançadas e vibradas naquelas paredes mais que centenárias.

Histórias de tantas famílias, tantos novos atiradores e bailantes, tantas bandas, tantos Godofredos que, espera-se claro, nascer ainda anos a frente. O salão parece vazio, mas ele continua ecoando o estampido das carabinas, a melodia dos acordeons, o arrastar dos sapatos e a alma de seus frequentadores – de ontem e de hoje – como eu, você, tantos outros… como Godofredo.

Ah… felicidades, caça-e-tiro! Ao meu avô, gratidão por tudo. Orgulho não se mede, e história não se para, só continua, para sempre, na ponta da carabina, no baile, no Garcia-Jordão.


(Abaixo, uma recordação de uma marcha do Rei de 2016… Desculpe, mas não da pra evitar uma lágrima teimosa…)

1 comentário em “Garcia-Jordão, por Godofredo e seu neto”

Deixe uma resposta