Eu lembro do tempo distante que a chamavam de “filha do picolezeiro”…
Garoto inocente, puro filhinho da mamãe, paparicado e sempre com a bendita camisa por dentro da calça, pensando ser a forma correta de vestir-se. Inocente, pueril, olhando o mundo com o temor do gigantismo dele a minha frente…
Claro, eu era criança, ela também era. A tal “filha do picolezeiro”. A garota que, vez em quando, ia a escola agasalhada num vistoso blusão peluciado azul claro, sempre rodeada das amiguinhas que a seguiam rumo a rua de esquina da minha casa.
E eu vou contar e rasgar, tá? Era uma joia: olhos verdes, penetrantes, tão profundos quanto. Sorriso tão simples quanto intimidador. Brincava marotamente com um lápis ou as unhas longas entre os dentes. A tal definição da menina-moça que fazia os nefastos babarem vulgarmente, uma petulância!
Com aquela idade, eu pensar em “amor” era a maior de todas as inocências. Uma fantasia tão maluca que as professoras chamavam a gente de canto para arrotar com aquele tom jocoso e chato de um adulto já contaminado pelo preto-e-branco da vida: “vocês nem saíram das fraldas ainda!”
Hipócritas! Amor na infância… Quem nunca os teve? Não recorda, rindo levemente e sem jeito?
Qual fidalgo nunca escreveu cartas melosas, embalado por algum The Calling perdido no mp3 player?
Outros tiveram mais sorte: reencontraram a pessoa que acalantavam e desenhavam e pintam neste quadro da vida, por hoje, uma história de verdade.
Me desculpa, meu caro, se o teu negócio era “pegar geral”, isso não conta, não faz parte do que digo, pode parar de ler por aqui.
A puerilidade não nos dá a faculdade da razão. O tal do “amor infantil”, inocente, sem vulgaridades carregadas, o erotismo da idade das descobertas, incompreensível ao olhar adulto.
Naquele tempo, a molecada falava abusadamente em “beijar na boca” e questionava maliciosamente sobre o bendito “BV”. Irritante, mas compreensível: ninguém está pronto para entender relações nessas idades, tudo é idílico, cru e carregado de ansiedade.
Os adultos riem, muitas vezes encantados por esta leveza que esta gente inocente sente. Tudo faz parte da brincadeira, de uma memória saborosa, e eu diria: cada vez mais rara, poluídas pelo erotismo destes tempos.
Mas não. Ouvi falar de histórias com cara de novela, cinema, e sonhava com isso. Pior quando cê tinha alguém pra sonhar isso, tão pura e inocente quanto uma criança podia se permitir. A minha atriz nestes devaneios: Gisele.
Que nome intenso, não? Já trava na primeira tentativa de falar. E eu nunca falei dela, nem em poesias, deveria falar, escrever, relembrar mesmo que as lembranças fiquem só em mim mesmo.
Gisele, a filha do picolezeiro de sobrenome polaco quase impronunciável, era a menina mais linda da sala. E algumas das minhas colegas daquele tempo talvez me coloquem na cruz por isso, mas o que posso fazer se eram meus olhares e percepções sobre a mocinha de olhos verdes?
Gisele era a definição do tal “amor de infância” que digo. Talvez uma atração que beirasse o físico, e ela era realmente linda e fascinante, mas tinha uma doçura nela, algo que misturava a voz cálida e sutil com os trejeitos de uma menina de atitude.
Eu gostava dela a distância, mesmo ela estando, por vezes, a milímetros de mim. O tal “amor platônico” sabido por todos e que transformava a sala de aula naquele coral uníssono de bocas cantarolando: “o André gosta da Gisele!”
Um dia, até mesmo um policial militar entrou nessa roda. Eram os tempos do Proerd, aquele dito e decantado programa de resistência à drogas e violência, mas que permitia ver o lado leve dos homens e mulheres de farda. O que nos dava aula, cantava animado o mesmo coro, para meus envergonhados protestos.
Era a altura da quarta série, e me arrepiava, em vezes, de saber que sentava na frente de Gisele. Entre idas e vindas até ali, era o mais perto que estava dela, por vezes lhe tomando emprestadas canetas coloridas ou ela me “espetando” com a unha postiça atrás de algo.
Conversas? Você acha que uma criança platonicamente amando articularia algo diante de sua musa? Não tinha como…
Gisele era aquele serzinho que a gente imaginava segurando a mão, salvando a vida em histórias imaginativas de polícia-e-ladrão, príncipe e donzela. Não era poeta ainda, pois seria ela o tema de alguns versos perdidos, de certeza.
Gisele sonhava alto, mas tampouco a conhecia. Sabia, nos conversês adultos, que o picolezeiro, seu pai, afogara-se em alto mar e partiu com o velho Fusca verde pro alto. O máximo que conhecia de sua vida, sendo o resto desinteressante quando ela estava, naquele momento, na carteira atrás de mim ou, raramente, me acompanhando até a casa.
Ah, essa puerilidade que transforma tudo em platônico. Ela desapareceu do coração, talvez deixando um arranhão duro em mim mesmo, quando numa tarde nublada, deu um demorado beijo em um guri do lado de minha casa. Espiava pela cortina, aquela maré de gente, querendo e querendo ver o “casal” trocar ósculos sem fim.
Coisas de criança… mas, seria meu coração tão inocente quanto adulto nos meus sentires?
Tantas outras histórias passaram pelo meu caminho: amores, namoros, poesias e dissabores, quantos foram. Gisele desapareceu na sexta série. Dizem que enloirou os cabelos, mas em tão poucas imagens que vi, parece que continua a mesma moça doce e de fala mansa e sutil de outrora.
Não sei. Falar de amor – coisa que gosto de falar – passa sempre por este momento. Tempo que aprendi tanto e tropecei ainda mais. A inocência do amor infantil resumido na mais bela lembrança e lição que tenho até hoje: Gisele.
Onde ela está? Sei lá eu! Se está com alguém, se é mãe, se não o é, ah… tem coisas que não importam. Mas se estiver bem e, numa tropeçada da vida, ler estas linhas, ficarem feliz se levantar nela alguma boa lembrança destes nossos desencontros.
Enquanto isso, sigo nas minhas poesias e acreditando na verdade do sentir humano, do verdadeiro amor que move meus versos e meu coração. Um dia, quem sabe…
Gisele…
“Nossa maior grandeza está na suavidade e ternura de nosso coração…”
Rumi
Não tenho nem palavras para comentar tanta riqueza de detalhes, tanta gentileza e carinho imenso. Vc é realmente um grande poeta André. Fico lisonjeada por ser lembrada de uma forma tão linda. Obg por essa poesia. Linda demais. Bj no coração 😘