“Virginia, qual é a música?” Na televisão brasileira, existem e existiram várias ditas “portas de entrada” para a música. Desde os festivais aos apresentadores que, enxergando talentos como forma de enriquecer nosso cancioneiro e seus shows, criavam casts e protagonizavam momentos diante de câmeras. Tudo isso ajudou a lançar nomes e consolidar marcas para nosso mercado do som que perduram até hoje.
É fácil lembrar, de bate-pronto, de nomes como Ari Barroso ou Chacrinha, que entre calouros que os acorriam, recebiam deles o primeiro empurrão no mundo da música. Coube ao “velho guerreiro”, por exemplo, a conversa amiga que fez Clara Nunes virar o rumo da música romântica ao samba que tanto gostava de cantar, incorporando detalhes do candomblé e da cultura baiana no seu som que são lembrados sempre.
Mas, e Silvio Santos? Será que o “homem do Baú” não tinha esta verve tão pronunciada entre as atrações que popularizou? Seria exagero coloca-lo entre estas ditas “portas de entrada” da música? Apesar de mais ser lembrado na classe artística do que no mercado do som, o filho de Alberto e Rebeca também tem parte na música brasileira, desde o lado mais cult dela até os momentos em que ele mesmo usava a voz.
E é usando a voz que ele se projetou. Ainda num tempo em que o carnaval era movido pelas tradicionais marchinhas, o “peru que fala” arriscava e gravava composições. Nos anais do YouTube, existe um registro tão raro quanto precioso datado (pela fonte) de 1959. Era um trecho curtíssimo do programa “Galera do Nelson”, de Nelson de Oliveira. Uma época onde Silvio já estava em São Paulo, locutando pela Rádio Nacional onde esteve por anos e escreveu seu nome nas ondas hertzianas.
Marchas de carnaval, musicas de cunho popularesco sem ser pejorativo no termo, mas aquelas tão marcantes que basta o primeiro verso para a melodia começar. Silvio parecia conhecer bem este filão e sua voz ajudou a reverberar muito este filão mesmo num tempo em que o carnaval não era mais tão de baile e brincadeira como nos tempos de adolescência do apresentador. No entanto, este caminho rendeu-lhe quatro discos no correr da carreira.
O primeiro deles, justamente, gravado a 50 anos atrás pela RCA no seu selo Victor, o mais popular da casa do cachorrinho. “Silvio Santos e Suas Colegas de Trabalho” é uma compilação de sambas, marchas e canções populares reunidas em vários pot-pourri, as vezes intercalados com propagadas do próprio Baú da Felicidade e canções utilizadas nos programas que apresentada à época.
E não só eles, até mesmo as músicas que embalavam os programas de Silvio ficavam rodando em looping na nossa cabeça. Eram uma espécie de marcas sonoras perfeitas, feitas sob medida e algumas tomadas de empréstimo de clássicos internacionais. Uma das mais famosas é a belíssima “Those Were The Days“, da musa da música britânica dos anos 1960 Mary Hopkin e que foi tomada como uma animada entrada dos jurados no “Show de Calouros”. E detalhe: Mary contou com um produtor muito especial na época da gravação: o então “paquera” Paul McCartney.
Alias, Show de Calouros, bem lembrado! Entre os ilustres jurados que integravam a banca de Silvio nas noites de domingo, uma delas merece palmas até hoje: a “dama do Encantado” Aracy de Almeida. A força de comunicar do animador talvez tenha dado a ilustre interprete favorita de Noel Rosa muito mais tempo de vida nos merecidos holofotes e reconhecimento do que ela mesma poderia imaginar.
Alguns até questionavam pejorativamente este movimento de Aracy, mas ela, com a autodeterminação que lhe era peculiar, era direta e franca: “eu estou lá pra faturar”, mas ganhava muito respeito do apresentador e dos colegas de mesa. Era uma dama cult, em meio ao mundo cult que embolsava consigo também figuras da música marcantes naqueles períodos entre os anos 1970 e 1980, sobretudo. E no palco de Senor encontravam espaço para cantar e reverberar os sucessos que faziam nos discos que lançavam, as vezes até ignorados em outras emissoras.
Ainda nos anos 1970, o palco dos estúdios da Vila Guilherme e o Teatro Manoel de Nobrega recebiam nomes da música dos mais variados: Belchior, Roberto Leal, Jerry Adriani, Hermes Aquino, Cyro Aguiar, Guilherme Arantes, Wilson Simonal e tantos outros. Estas portas que se abriam a uma parada mais mesclada de sucessos eram reflexo também nos anos 1980, já dentro de outra atração que Silvio fomentava na grade de shows do ainda jovem SBT: o “Vamos Nessa”, que reunia a parada mais crua e verdadeira do rádio, entre o popular e o conceitual.
Os anos 1980, inclusive, mostraram outra faceta de Silvio Santos com a música. Dentro do SBT, dois nomes enormes do Pop latino encontraram terreno fértil, sobretudo pela proximidade da emissora com a produção artística vinda da América Central, sobretudo o México, onde a parceria com a Televisa rendeu personagens e índices de audiência surpreendentes. As produções de Roberto Bolaños (Chaves, Chapolin e afins), as novelas e, claro, a música.
O primeiro tiro certo, o Menudo, de um ainda jovem Ricky Martin, explodiu no país graças ao faro da emissora ao perceber o sucesso do porto-riquenhos, que viraram figurinhas carimbadas da casa e febre entre as ditas “boy bands”. O movimento se repetiria nos anos 2000, quando uma série adolescente mexicana virou reflexo de jovens pelo país afora e fez a banda que nela interpretava um fenômeno que reverbera até hoje: RBD.
Mas com Silvio Santos, que considerava artistas como verdadeiros “colegas” de profissão e isso não fugia a regra na música, até mesmo cantores, cantoras e bandas viravam ilustres competidores por prêmios em dinheiro que envolviam, obviamente, a musica. O “Qual é a Música”, cabe dizer, foi uma adaptação de uma atração vinda dos EUA (“Name That Tune“), de onde vinham muitas inspirações para programa do homem-sorriso, diga-se.
Talvez ali residiu-se um dos maiores encontros referentes a música com a mão e o microfone do bom judeu. Dentre tantas edições do programa, que como outros tantos criou bordões e momentos inesquecíveis entre jogos marcantes, outro personagem se fez entre uma vitória e outra: o tio Ronnie Von.
O “príncipe” é tido como o maior vencedor da atração, com 25 semanas (7 meses) seguidas no ar, apoiado numa técnica que desenvolveu para vencer sempre. No entanto, a sequencia vitoriosa acabou até mesmo afetando o psicológico do hoje também apresentador, que teve de interrompe-la por ele mesmo para não se ver ainda mais nervoso.
“Voltei. E não sei por que razão, ganhei de novo. O que eu fiz? Comprei todos os livros de edição musical que existiam, e comecei a assinar a parada musical de sucesso – era pago na época. Depois de algum tempo, você se acostuma com o som da orquestra, as músicas se repetiam. Eu fiquei absolutamente fanático por essa história, a ponto de ter um problema psicológico. Sério, por minha honra. Me convidem para qualquer coisa, menos para programa de game show! De tão nervoso que eu fico”, diz Ronnie.
Pois é, começamos esta crônica tentando entender aonde encaixar Silvio Santos neste campo de “porta de entrada” da música. Se contam-se nos dedos revelações criadas pelo homem-sorriso para nosso som, o que o coloca nesse panteão com honras é como ele pode, no meio de tantos negócios e ideias para a arte que desenvolvia, misturar o cancioneiro nacional nas brincadeiras e grandes encontros que promovia.
Realmente, a musica brasileira deve algo, e algo bem grande, ao talento e irreverencia de Silvio Santos. Em ouvir, ver e se emocionar entre risos e vibrações, pudemos nos divertir muito bem com nossa canção em uma visão totalmente diferente e de gravata afrouxada. Realmente, como dizia Jorge Ben em um verso de entrada de um Show de Calouros da vida: “Silvio Santos, é coisa nossa!”.
E graças a ele, a música brasileira brinca e se diverte, “mas que vai, vai, mas que vai bem!“