Enxaimel: técnica de construção que utiliza madeiras encaixadas em posição horizontal, vertical e oblíqua, com preenchimento dos espaços por tijolo ou tabique, deixando essas madeiras visíveis nas fachadas.
Mesmo que não seja unanimidade falar que é uma técnica 100% germânica, foram os alemães que a trouxeram para nosso modo de vida nos antepassados. Construções com padrão semelhante, mas de rara beleza, sobretudo quando atravessam o tempo resistindo as investidas naturais e, principalmente, ao olho gordo do descaso e da especulação.
Enxaimel é uma marca simbólica do Vale do Itajaí ou de qualquer lugar cuja presença alemã o deixou impressa na arquitetura, sobretudo nas sobreviventes residências interioranas. Um legítimo toque colonial que nenhum falsete construtivo pode imitar, mesmo que a imitação engane o incauto e traga as claras a velha, carcomida e clássica polêmica: até onde vai o limite do famigerado e, por vezes, defenestrado “falso enxaimel”? Ele é correto para o turismo ou uma ofensa a preservação histórica da legitima técnica construtiva?
Há tempos, encontrei-me com uma alegre frida no setor 25 da Vila enquanto a banda dos tiroleses dava o show. Arquiteta, escritora, pesquisadora e professora nas áreas de artes, arquitetura e urbanismo planejamento urbano e regional. Discípula direta da obra de um pioneiro do novo olhar arquitetônico para o Vale e, como este escriba, uma memorialista nos detalhes: Angelina Wittmann.
Ela escreve sobre história no “vizinho”, mas nada que nos impeça de trocar histórias e conhecimentos, bem na verdade aprender mais com o que ela tem guardado nos seus alfarrábios. Nas poucas palavras que trocamos, além da reverencia ao trabalho, lembrei ela que tinha um tema na ponta do lápis: o professor que a fez ser uma arquiteta de referência na cidade, o saudoso professor Vilmar Vidor.


Quanto a história dele, nem preciso adentrar demais no tema pois Angelina tem tudo guardado e registrado, passo a passo, no blog que mantém (e que vale a leitura). O que me faz recordar do velho lobo da arquitetura, porém, é a velha da polêmica do falso enxaimel, aquela clássica que mexe uma cidade toda durante um dia todo, sobretudo os espertos atrás de curtidas.
Fora todo o novo olhar que Vidor trouxe ao planejamento urbano de Blumenau (ou a tentativa de implantação dele, barrada em vezes por interesses políticos simplistas), foi da batuta do professor nos corredores acadêmicos o olhar sobre a preservação do patrimônio histórico edificado de Blumenau por meio do Projeto Patrimônio Arquitetônico de Blumenau – Memorvale, que foi a campo a cata de edificações resistentes ao tempo, sobretudo o enxaimel que ilustra tantas daquelas fichas.
A discussão em torno é antiga e nunca vai terminar em um ponto final aqui e ali. Ela sempre se renova quando um enxaimel é derrubado ou quando um falso enxaimel é erguido em nome da ilustração turística da cidade (o que é um ponto válido). Prova disso foi há 12 anos atrás, quando da abertura – com atraso – da nova agencia dos Correios, no centro da cidade.
Além da demora na entrega do prédio reformado, a polêmica instalada ficou justamente com relação ao apagamento do desenho de época, entrando no lugar um prédio dentro do famigerado “falso enxaimel”, cujo fingimento mal conseguia enganar o incauto ao contemplar a nova agência. O prédio antigo, segundo endereço dos Correios na cidade, tinha o estilo clássico do modernismo sessentista, mas não resistiu ao tempo e as falhas nas fundações, como se verificou depois.
O apagamento do patrimônio histórico edificado, sobretudo substituído por alguma “caixa quadrada simplista e minimalista” sempre foi tema de discussões acaloradas ou de campanhas de socorro que, se não geravam o resultado esperado, acabavam na pilha de escombros de algum novo dono que nem arriscava a adaptação da estrutura para um novo uso.
A bela casa da Frau Peiter, que foi cenário de filme nos anos 1960 (“Férias no Sul”) foi um destes exemplos, esquecida entre as esquinas da Alameda Rio Branco e que, tempos depois, virou apenas passado para quem ainda pode vê-la em plenitude. Até mesmo uma campanha foi feita para salva-la, sem sucesso. Segue o mesmo destino daquela que, segundo Urda Alice Klueger, foi a “última horta da cidade” na esquina da mesma alameda e cujo xará André Cantoni visitou antes que ela desapareça da paisagem.


Mas quanto ao falso enxaimel, o assunto voltou a correr sutilmente em algumas das rodas de discussão virtuais que observam os primeiros movimentos da reconstrução da galeria comercial da Catedral São Paulo Apóstolo, destruída por um incêndio no começo do ano. Feliz é a notícia da reconstrução, mas recordar que ela era parte deste cenário criado com armações de madeira coladas na parede fria já colocou o tema na marca da cal das polêmicas da cidade.
Aliás, o centro é o lugar onde mais se imprimiu a história do enxaimel fake, e este conto do vigário não vem de hoje, é alimentado pelo menos há mais de 45 anos com uma leitura distorcida sobre o que é e o que não é o enxaimel de fato. A lei 2262, de 30 de junho de 1977 e que revogada uma primeira tentativa vinda de cinco anos antes, foi talvez o norteador maior desta procura pelo cenário turístico com cara germânica: “conceder favores fiscais a casas típicas que forem ‘construídas’ na área urbana de Blumenau”.
A benesse já havia sido pensada no governo de Evelásio Vieira, mas na gestão de Renato Vianna a proporção foi aumentada, o que gerou nos anos seguintes uma verdadeira corrida à arquitetos e engenheiros em busca de projetos para configurar fachadas em alegorias que lembrassem o enxaimel ou a casa dos alpes, o que preconizava a lei.
Benéfica ao turismo? O cartão postal estava feito e havia até o munícipe incauto que comprou o discurso e adotou como enxaimel autêntico. E dentro desta defesa sobre o autêntico e o falso, o professor Vilmar era categórico como era a característica de vida dele, sempre crítico e direto, sem rodeios. Imerso nos primeiros passos da catalogação do patrimônio edificado e percebendo o descaso na conservação, foi interpelado para falar sobre a polêmica levantada em entrevista ao Jornal do Almoço da antiga RBS, em 1989.
A busca incessante pela consciência na preservação histórica do patrimônio edificado foi uma constante na trajetória do saudoso professor até o fim da vida. Ácido e direto nas redes sociais quando espigões tomavam o lugar errado no planejamento ou quando outro casario histórico era tombado em escombros, Vidor deixou em alguns dos que vieram após dele um pouco deste pensamento, sejam alunos ou entusiastas da história da cidade.
A rigor, o desmantelar do que ainda resta de nossa memória entre paredes encontra barreira em poucas ou poucos incentivadores, ideias bem pensadas na readequação de espaço ou, felizmente, em iniciativas de restauro que recolocam o imóvel à velha glória. Um processo gratificante, mas que encontra barreira, muitas vezes, no simplismo do “alto custo”, o que empurra o antigo para o chão sem cerimônias.
E o falso enxaimel segue, mesmo passados tantos anos da velha lei, como um constante fantasma que divide mesas de discussão. Para o atrativo turístico, é um palco perfeito que tenta emular o ambiente cru da cidade como uma vila germânica, mas quem joga pedras na imitação tem os motivos que vão além da derrubada da história, mas a venda errônea de um enxaimel que não existe.

O debate, ao que se indica, seguirá quente com o tempo ou reacenderá sempre que um casario antigo vem abaixo ou quando outra imitação germânica subir. Uma coisa só é certa e isso todo mundo concorda veementemente, ao menos quem pensa na história da cidade como elemento arquitetônico: preservar a memória também passa pelas paredes do passado, e arquitetura não é apenas derrubar, mas restaurar ou readequar mantendo vivas as histórias daquelas linhas escritas em tijolo, cimento e tinta em algum lugar do passado.
Enquanto isso, aguardamos o próximo projeto pronto esperando os dedos apontados. Que o novo, de fato, seja erguido, mas que isso não signifique pisar em cima da identidade e da memória da velha cidade que o abriga.
Sei que ninguém pediu minha opinião e ninguém se importa, mas vou aproveitar essa caixa de comentários para escrever mesmo assim.
Minhas opiniões começam com “Eu acho”, pois sou um cidadão médio ignorante no quesito arquitetônico. Mesmo assim, eu acho que podemos todos concordar que preservar o pouco que ainda resta de enxaimel verdadeiro, original, deveria ser a prioridade número 1 – com a número 2 sendo o incentivo governamental a construção de edificações neste estilo tradicional.
Contudo, não sou contra o famigerado “falso enxaimel”. Acredito que o apelo turístico seja apenas um ponto de vista desta história, e tem outro fundamental que estamos nos esquecendo: A globalização.
Vivemos em um momento onde o acesso à informação, e por consequência exposição a ideias e conceitos, viaja continentes em questão de segundos. O que dizer dos eventos de animes japoneses, ou as bonecas Lol (ainda se fala disso?) ou os K-POP e tantos outros que quase imperceptivelmente permeiam nosso dia-a-dia, passando quase despercebidos, mas aos poucos conquistando uma geração após a outra, que não mais mantém os costumes e tradições de seus pais e avós? Nem precisa focar no exterior, basta olhar os imigrantes que vêm de outros estados para a região de Blumenau – sempre respeitosos e bem-vindos, mas que trazem consigo um pouco de sua própria cultura? Aos poucos, o pouco que resta da cultura Blumenauense que conhecemos vai se diluindo na explosão demográfica, restando apenas uma vaga lembrança do que um dia foi.
Fazendo um paralelo do enxaimel com um outro artefato bávaro que conhecemos bem, a lederhosen. Por muitos anos fui na Oktoberfest com uma lederhosen de camurça que comprei em uma conhecida loja na Vila Nova. Hoje tenho a oportunidade de usar uma de couro, que comprei em uma viagem à Alemanha. Sabe o que ambas têm em comum? São tão falsas quanto o enxaimel falso.
A lederhosen era originalmente feita de couro de cabra, que é muito mais resistente à dura lida dos camponeses, e quando a elite começou a usar, era feita de couro de cervo. Hoje, camurça ou couro bovino. Mas convenhamos… importa? Não é muito mais gratificante ver que as pessoas continuam usando e mantendo viva a cultura do que se atentando a preciosismos que podem tornar elementos culturais inviáveis ou inatingíveis?
Pois é exatamente assim que me sinto com o “falso enxaimel”. Ignorando o apelo turístico, ele pode ser um instrumento de orgulho e preservação de identidade, algo que as pessoas vejam em mais lugares e se identifiquem. Não deve ser fácil fazer enxaimel hoje em dia, não apenas pela dificuldade de encontrar madeira de qualidade, como pela mão de obra experiente. Os poucos artesãos não dariam conta de revitalizar uma cidade inteira com enxaimel verdadeiro no seu tempo de vida, e em um mundo tão competitivo, as novas gerações não têm interesse em aprender algo com pouca aplicação no mercado, tornando o uso exclusivo de enxaimel legitimo impraticável. Enquanto o falso enxaimel, facilmente uma edificação consegue ganhar identidade visual atrelada a essa região.
Sem sombra de dúvida, eu prefiro o significado verdadeiro ao falso e devemos não apenas preservar como incentivar. Mas entre falso enxaimel e nenhum… eu fico com o falso.