Inesquecível, para se fazer justiça a história que por muitas vezes a colocava sob panos escuros, negligenciando-a da paisagem do passado de Blumenau. Quem hoje passa pela Ponte de Ferro (Aldo Pereira de Andrade) nem sequer cogita que aquele morro verde ao lado esquerdo, guarnecido pelo encantador Museu da Água no topo do Boa Vista, abrigou o que sabe-se bem ser tecnicamente a primeira favela da cidade-jardim.
Encravada naquele morro, modestíssimos casebres abrigavam famílias humildes sem canto reservado para morada na cidade que as acolhia. Era com o sustento diminuto do trabalho diário e muita persistência em tempos adversos que se fazia a vida naquelas habitações simplíssimas, que não pareciam Blumenau para os olhos cegos mas eram Blumenau construída por aquelas mãos. Mãos de quem vivia na Farroupilha, a favela encravada no que hoje é a região central da cidade e que, em alguns momentos, não existe para muitos que ainda teimam em esconder esta história.
O nascimento e a vida entre casebres
A Farroupilha era eclética, formada por várias etnias, ideologias, vivências. Homens que na grande maioria vieram para a construção de trechos da Estrada de Ferro Santa Catarina (EFSC) – sendo a própria ponte, o túnel e outros ramais- e outros tantos que vinham a cidade em busca de vida melhor naquela município que já despontava nos mapas do estado. A povoação era pequena, mas aos poucos se multiplicava no correr dos anos, quase formando um bairro no alto do então Morro da Caixa d’Água, onde ficava a ETA I (hoje o Museu da Água, naturalmente).
As primeiras (e únicas) imagens da Farroupilha datam de fins da década de 30 e década de 40, sendo esquecidas sabe-se lá exatamente por quanto tempo. A denominação da favela era muito mais pejorativa, soando como maltrapilho ou desleixado, mas acabou sendo uma espécie de tratamento sentimental de quem lá vivia.
A dificuldade era imensa de viver, mas se vivia. Manutenção das vielas de chão batido, sem máquinas, eram na picareta, na pá, no verdadeiro trabalho braçal, isto sem contar as disputas judiciais contra Roberto Baier, um dos proprietários de parte oeste das terras ocupadas pela Farroupilha. A leste era de Bruno Kadletz, a qual desconhecem-se ações judiciais vindas dele.
No entanto, a Farroupilha era agito, era um canto de vida que, se não era expressão na cidade, o era no futebol e de uma forma um tanto surpreendente. Os mais apaixonados torcedores do antigo Brasil/Palmeiras de guerra (depois, BEC) vivam na Farroupilha e massificavam as arquibancadas, seja no Deba ou na baixada, em dia de jogo ou do clássico contra o arquirrival, o Olímpico.
Era uma espécie de torcida do povo, pois não havia distinção de classe na torcida do clube verde da Palmestrasse, ricos e pobres pulavam juntos a cada gol. De um punhado de loucos nascia a Torcida Farroupilha do Palmeiras, que organizava-se com batuques e bandeiras verdes do clube pelas ruas, na primeira provocação aos simpatizantes grenás.
Mas a história acabou tendo um fim, determinado pelo próprio município que viviam. Em 1949, por ventura dos preparativos para a comemoração do centenário no ano seguinte, a favela foi extinta. Os moradores foram alocados em outros dois locais, nas ruas Araranguá e Pedro Krauss Sênior, hoje duas áreas que, por conta do relevo e da ocupação descontrolada, são motivo de preocupação em tempos de chuva constante.
Do esquecimento a volta às discurssões
Se há um problema que nasceu neste processo foi, simplesmente, o das moradias irregulares em Blumenau. Casas em morros, posseiros e outros elementos encantavam e demonstravam ser as únicas opções de famílias humildes que criavam verdadeiras vilas em torno de um lote. A situação cresceu, descontrolou-se. Nas grandes enxurradas e enchentes, registros de desmoronamentos de casas eram quase corriqueiros e só agora o velho problema da regularização parece estar sendo debelado, ainda a pequenos passos no começo de um trabalho longo e que parece sem fim.
No entanto, este não foi apenas o único problema que nasceu depois do deslocamento das famílias daquela região, o que mais pesou nesta história foi, infelizmente, o esquecimento. Talvez por alguma vaidade ou por alguma forma de vender a imagem de cidade 100% bonita e sem pobreza, o assunto virou uma espécie de tabu e caiu de tal forma no underground citadino que frases como Blumenau não teve (nunca teve) favelas viraram habito. Uma terrível negligencia com aquele pedaço de tempo daquela comunidade.
Triste e sem justificativa. Ao menos, até 2007, quando a jornalista Magali Moser resolveu promover uma espécie de choque de realidade, um soco aos vaidosos que ainda teimavam com uma verdade inverídica. Uma matéria no Jornal de Santa Catarina expunha para quem queria (ou não) ver a tal Farroupilha que tanto era falada e ocultada. Lá estavam elas, as famílias em casebres simples, demonstrando que aqui também haviam as tais favelas que ninguém em Blumenau (ou pelo menos os mais bairristas) queriam saber.
Pois a memória não é cruel com quem sabe que se a história foi escrita não há o que a mude. Na última Conferencia da Cidade fui surpreendido com o relato dos próprios conferencistas a destacando como o primeiro dilema fundiário da cidade. Se há um problema hoje de regularização fundiária, a chance de redimir-se com uma dívida histórica começa agora, e que recentemente começou, mesmo a passos lentos.
A memória da Farroupilha, tão oculta e esquecida, jamais deve ser apagada. Em memoria de quem também (e verdadeiramente) ajudou a construir a cidade que vivemos no cerne da roda econômica que Blumenau hoje gira com vigor. É neste cerne que está um pouco do que aquelas famílias, dos simples casebres do Morro da Caixa d’Água, fizeram para a cidade, que se por um momento a história lhe virou as costas, esta tem o dever de lembra-la como exemplo e como recordação verdadeira e sem ocultismos.
Á Farroupilha, o respeito histórico, sempre!
Grande André!
Cada dia você me surpreende mais com seus belos e bem elaborados textos sobre nossa história contemporânea de Blumenau.
Este assunto sobre a Farroupilha não é conhecido pela maioria dos blumenauenses, como se fosse algo que a cidade quer esconder do centro ou próximo a ela. É uma história que não devemos jamais esquecer até para ajudar. Temos sim que ter orgulhos dessa gente que ajudou no desenvolvimento da cidade e estão por ai seus descendes ainda contribuindo. Além as ruas que você cita, também algumas famílias foram locadas para a Rua Pastor Oswaldo Hess. Com muito orgulho a torcida Farroupilha era a festa da cidade. Leiam http://goo.gl/QwcwFg
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.