Uma fase marcada pelo descobrimento, pelas brincadeiras e pela inocência, assim deveria ser a infância. No entanto, várias crianças convivem com a sombra de uma ameaça invisível para muitas famílias: a violência sexual infantil. Um crime silencioso que deixa marcas profundas e atinge todas as classes sociais.
Cicatrizes que Jéssica*, ainda tenta curar aos 29 anos de idade. Quando tinha apenas cinco anos, dois vizinhos conhecidos da família dela começaram a tocar no seu corpo. Jéssica se tornou mais uma vítima de abuso sexual.
Devido aos pais trabalharem, a menina ia para a creche no período da manhã e passava as tardes na casa dos vizinhos. O casal tinha três filhos, sendo dois homens e uma mulher. Na época, a filha do casal buscava Jéssica na creche, mas como ela trabalhava à tarde, a menina ficava em casa com os dois rapazes.
Em vários momentos, o filho mais velho a convidava para ver jogos e desenhos no quarto. O que Jéssica não sabia era que isso seria uma espécie de isca.
“Eu adorava assistir ao desenho do Pica-Pau, e ele sempre colocava para eu ver. Fizemos isso diversas vezes, mas em um determinado dia ele fechou a porta e apagou a luz. Enquanto eu assistia, ele pediu para eu deitar na cama. Quando fiz o que ele mandou, senti a mão dele tocar o meu corpo. Fiquei paralisada sem saber o que fazer”, lembra.
“Ele passava a mão no meu órgão genital, e eu sabia que aquilo era errado, mas não sabia o que fazer. Sentia muita vergonha e medo. Não queria mais ir para o quarto. Quando ele fazia o convite, eu corria para a cozinha e ficava com a mãe dele. Agarrava o braço daquela mulher e não saía mais do lado dela”.
Não demorou muito para que o irmão mais novo fizesse o mesmo que o irmão mais velho. No sótão da casa, ele trancava a menina e se masturbava enquanto tocava o corpo dela.
“Eu não consigo entender. Eu tinha cinco anos. Como alguém conseguia ficar excitado passando a mão no corpo de uma criança? Isso é doentio! Não sei quantas vezes isso aconteceu, mas teve um dia em que contei para a minha mãe, e a partir desse dia, eu tive paz”.
Após contar para a mãe sobre o abuso, Jéssica parou de frequentar a casa dos vizinhos. “Não lembro o que ela falou na época, só sei que naquele dia ela me comprou uma fazendinha de brinquedo, e nunca mais voltei para lá, mas minha mãe também não denunciou”, enfatizou.
Violência sexual infantil em Blumenau
Infelizmente, Jéssica não é a única que faz parte das estatísticas da violência sexual infantil em Blumenau. O número de casos tem aumentado ano após ano na cidade. Segundo o Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (SAVS), em 2021 foram registrados 268 abusos, enquanto em 2022 foram registrados 362 casos, representando um aumento de 35,07% em relação ao ano anterior.
Os números revelam que, a cada 24 horas, uma criança sofreu esse tipo de violência. Somente de janeiro até o momento, já foram contabilizados 139 registros. No entanto, há um número que nunca descobriremos, um número que está oculto nas memórias das vítimas.
“Esse adulto que foi abusado pode achar normal que outras pessoas abusem dele – de várias formas, não apenas sexualmente. Ele permite isso inconscientemente. Os problemas podem ser tanto psicológicos quanto fisiológicos”, explica a psicóloga Ana Hoffmann.
Portanto, é fundamental ter um adulto que acredite no que a criança diz. “Às vezes, o abuso não se torna tão traumático quando a criança não é ouvida, não recebe a credibilidade necessária ou não é devidamente acolhida. Muitos casos que tratei envolviam abusos cometidos por conhecidos, onde o caso era abafado pela própria família”, comenta.
Os danos causados podem ser perturbadores. Por isso, quanto mais cedo o tratamento psicológico começar, melhores serão os resultados para superar o trauma. Em Blumenau, os casos são atendidos pela Secretaria de Saúde, no Centro de Saúde Rosânia Machado Pereira.
Segundo o município, a equipe atende tanto as urgências quanto os casos referenciados por outros serviços da Rede Intersetorial. O serviço para pessoas em situação de violência sexual na cidade está disponível de segunda a sexta-feira, das 7h às 19h, e também pelo telefone 3381-7684.
Como romper a barreira do silêncio e denunciar?
A pena para quem comete abuso sexual infantil pode variar de oito a 15 anos de prisão. Por isso, romper a barreira do silêncio e denunciar é o primeiro passo para que os agressores não fiquem impunes.
O Governo Federal disponibiliza diversos canais para atendimento às vítimas de abuso infantil. Um deles é a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, que funciona por meio do serviço Disque 100 e que agora conta com números no WhatsApp e Telegram (basta digitar ‘Direitoshumanosbrasilbot’ no aplicativo). Além disso, números indispensáveis nesses casos são o da Polícia Civil (197) e da Polícia Militar (190).
Outra fonte de apoio é o Conselho Tutelar dos municípios. Em Blumenau, existem três Unidades de Conselhos Tutelares, cada uma atendendo uma área específica. Você pode clicar aqui para identificar os locais e obter os telefones e endereços.
(Jéssica* foi o nome fictício usado na reportagem para preservar a identidade da vítima).