Ao mestre com carinho: Adeus a John Romita Sr.

POR: Douglas Sardo

 

O mês de junho de 2023 marcou uma perda monumental no mundo dos quadrinhos. Faleceu no último dia 12, aos 93 anos, John Victor Romita, mais conhecido por todos os fãs como John Romita Sr. Na vasta galeria de grandes artistas que passaram pela Marvel Comics, Romita se destaca, sem duvidas um dos melhores e fundamentais desenhistas da história da editora.

A “Casa das Idéias” já havia se estabelecido definitivamente em 1961 com a criação do Quarteto Fantástico, através do trabalho de Jack Kirby e Stan Lee, e em 1962 com o “Espetacular Homem-Aranha”, com Lee nos roteiros e o misterioso Steve Ditko no lápis.

Porém, em 1966, após 4 anos de colaboração no título “the Amazing Spider-Man”, a relação entre Ditko e Lee estava completamente rachada por divergências criativas e de créditos nas histórias, pendências que jamais foram completamente esclarecidas e que resultaram na saída do desenhista, após 38 edições no título aracnídeo.

Um duro golpe nos planos da editora, mas Stan Lee tinha uma “carta na manga”. O roteirista já havia contratado um veterano para essa possibilidade. É aí que entra o nome de John Romita. Artista com grande experiência, inclusive de trabalhos com Lee na antiga Timely Comics (antecessora da Marvel) nos anos 1940, John estava escalado para as revistas do Demolidor, e de lá não queria sair.

Porém, nos últimos meses de Ditko na Marvel, Stan colocou uma história envolvendo o Aranha na revista do “Homem sem medo”, apenas para testar como Romita se saíria desenhando o aracnídeo. O resultado agradou e “the man” não pensou duas vezes quando precisou substituir Ditko no título do teioso personagem.

John Romita, nos escritórios da Marvel com a arte de capa do número 156 de the Amazing Spider-Man.

Inicialmente Romita imaginou que seria algo temporário, para ele Ditko jamais abandonaria definitivamente um título de tanto sucesso. Mal sabia que estava se iniciando um dos maiores casamentos entre desenhista-personagem-revista de toda a história dos quadrinhos.

De cara, John ilustrou a sensacional “Como era verde o meu Duende” em Amazing Spider-Man 39, onde o vilão Duende Verde descobre a identidade secreta do Aranha. Com Peter Parker a sua mercê, o diabólico personagem revela sua própria identidade secreta: Normam Osborn era o homem por de trás da sinistra máscara.

O confronto decisivo resulta numa concussão para Norman, que convenientemente perde suas memórias recentes, esquecendo assim o maior segredo de seu inimigo e sua própria vida dupla. Estava lançada a base para uma sequência histórica. Com o Duende fora de ação por um bom tempo, Romita e Lee colocaram o Aranha em novo rumo.

Com a ajuda das belas linhas do mestre, nascia Mary Jane Watson, a beldade ruiva que disputaria as atenções de Peter Parker com outra moça que já havia aparecido sob o lápis de Ditko, mas que também ganharia um toque a mais de charme com Romita: Gwendolyne “Gwen” Stacy.

Após longo mistério, finalmente Mary Jane Watson era apresentada aos leitores. Romita se eternizava rapidamente como um dos maiores desenhistas dos quadrinhos.
Gwen Stacy, o amor de Peter Parker nos tempos de faculdade, nos traços de Romita.

Estabelecendo definitivamente o núcleo de coadjuvantes das histórias em torno dos dias de Peter na faculdade, a revista alcançou um novo nível de sucesso. Após alguns meses tentando emular Ditko, Romita percebeu que a saída do colega era definitiva, e passou a imprimir seu próprio estilo no personagem. Essa mudança, de fato, incomodou alguns puristas que preferiam o estilo mais, digamos, “Sci-Fi” de Ditko.

Mas por outro lado, o clima de faculdade das histórias, o romance rocambolesco com Gwen, o próprio momento que os EUA e o mundo viviam, de grandes discussões sobre a guerra do Vietnã, Hippies, drogas, tudo isso acabou realçando o traço magnífico de Romita. Como se cochichava nos corredores da Marvel, John levou o Aranha para a cidade grande, a um sucesso ainda maior, transformando a revista na campeã de vendas da editora.

Tantas histórias, tantos momentos. O surgimento do rei do Crime no memorável Arco “Homem-aranha nunca mais”, primeiras aparições de Rhino, Schocker, vilões e batalhas inesquecíveis…

A Capa de Amazing Spider-Man 50, uma das várias capas emblemáticas de Romita na revista.

Entre tantos momentos, vale destacar também a sequência épica em que vilões buscam uma placa de argila com hieróglifos misteriosos. Obrigando o Dr. Curt Connors (também conhecido como o Lagarto) a decifrar os escritos, o vilão Cabeleira de Prata conseguiu um soro que traria a juventude de volta para quem o ingerisse.

Após beber a substância, o velho mafioso rejuvenesceu, mas não podia imaginar que o efeito era tão terrível que aos poucos o transformaria em um adolescente, depois numa criança, um bebê, e finalmente desapareceria…”jovem para sempre”…

A ilustração que Romita fez para essa cena, e a capa da revista, estão entre os melhores momentos do Aranha nos quadrinhos.

A sequência de mestre Romita acaba de certa forma no número 88, em Junho de 1970, com um embate sensacional entre o Aranha e Dr. Octopus, que serviu de referência para um dos filmes do herói. A partir dali, Gil Kane começou a empunhar o lápis em Amazing Spider Man, mas nada que impedisse o lendário John de fazer aparições esporádicas como desenhista.

Após uma sequência lendária, era clara a preocupação da Marvel em manter o estilo estabelecido por ele, portanto além de desenhar algumas edições dali por diante, Romita fez também muitos trabalhos de arte-final em cima do lápis de Kane.

O ápice desse momento veio em 1973, nas edições 121 e 122, que marcaram época com a morte de Gwen Stacy, a amada de Peter Parker, nas mãos de um Duende Verde de memória recuperada e mais sinistro que nunca. O embate final entre os dois inimigos é outro clássico com as digitais de Romita por toda a história.

A partir dali, John passou a exercer cada vez mais o papel de diretor artístico da Marvel, trabalhando de forma menos direta nas revistas. Nessa nova função, ele colaborou na criação de alguns personagens que ajudariam a definir a editora nas décadas seguintes: Justiceiro, Wolverine, Luke Cage, Mercenário, só para citar alguns.

Ele exerceu o cargo de diretor artístico da Marvel até 1996, e dali para frente colaborou apenas esporadicamente com a editora. Pouco antes de sair, porém, Romita foi homenageado de forma simples, porém sensacional, como bem lembrou o excelente blog Omelete: Na edição 447 de Capitão América, uma história envolvendo a clássica paixão de Steve Rogers se passa. Sharon Carter estava de volta às aventuras do herói de bandeira, ela que foi várias vezes desenhada em outros tempos por… John Romita!

Em determinado ponto da narrativa, Sharon e o Capitão estão tentando impedir o vilão Caveira Vermelha de colocar as mãos no famoso cubo mágico, um artefato que dá poderes infinitos a quem o possuir. A heroína entrega o cubo nas mãos do herói e recomenda de forma sarcástica que ele pense em tortas de maçã e cachorro-quente, pois qualquer pensamento mais complicado poderia causar sérios problemas.

E aí vem a homenagem: no quadro seguinte, Sharon aparece desenhada como nos tempos em que Romita trabalhava na revista. Foi esse o desejo do Capitão: que ela fosse como nos tempos em que John desenhava a publicação, quando o mundo era melhor, na visão do lendário Steve Rogers.

Em entrevista, Mark Waid, roteirista dessa história, confirmou que aquele quadro foi desenhado por Romita, um dos últimos trabalhos dele na Marvel.

Uma homenagem dessas, e tantas outras como as que seguiram ao anúncio da passagem desse gênio, é mais do que merecida para alguém que, com um estilo maravilhoso, atuou com maestria durante décadas e ajudou a criar referências e um padrão de qualidade quase inatingível. Não bastasse tudo isso, John deixou um último legado, um herdeiro de seu talento: seu filho, John Romita Jr. se tornou mais um brilhante desenhista a encantar gerações nas revistas do Aranha e em outros títulos.

Saudades, mestre Romita. Vita brevis, ars longa.

John e universo do Aranha.

O “Grão de Café”, um símbolo dos tempos de Romita na revista do Homem-Aranha. O lugar era o “point” da turma da universidade Empire State.

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