Som n’A BOINA #32: No tempo do som internacional made in Brazil

Em um momento dos anos 70, o mercado musical brasileiro apresentava uma situação curiosa e incrivelmente desfavorável para a música feita dentro de casa. Mesmo com nomes promissores, dos segmentos mais populares aos mais sofisticados, as canções nacionais não vendiam como se deveriam vender. Do bolo de 100%, 57% das vendas de LP eram de cantores e bandas brasileiras, a outra metade, e em crescimento, eram estrangeiras.

O jogo bem virou por volta de 1972, com a produção nacional tomando um verdadeiro revés, chegando a representar meros 17% do mercado musical interno. Mesmo estes sendo tempos férteis para a canção brasileira com o surgimento de nosso Soul, o refinamento do Rock e da MPB, a questão de vendas era algo que pesava muito para grande parte dos profissionais que procuravam o lugar ao sol dos 17% de vendas. Poucos eram os privilegiados, e alguns dos muitos que ficavam a sombra encontraram uma alternativa: Cantar em inglês.

Finalmente, depois de entendermos um pouco de mercado fonográfico, posso contar-lhes melhor este fenômeno que levou cantores e bandas brasileiros a abrir mão do português e se tornarem conhecidos anônimos que começaram a emplacar sucessos e tornar-se conhecidos dentro e fora das cercanias brasileiras.

Era o tempo do Hits Brazil, onde a alternativa para o sucesso era cantar em inglês e se tornar audível para quem acreditasse que eram cantores estrangeiros, quando por trás da máscara estavam brasileiros de talento, alguns que seguiram pela música, outros que respeitosamente se retiraram mais que, ainda assim, são bem lembrados por quem viveu aquele tempo de criatividade e sonho.

Big Boy, um dos mais importantes locutores jovens do país. Revolução no rádio motivou o aumento da musica internacional no Brasil, o que fez o mercado de canções brasileiras sofrer uma significante queda (Reprodução)

Inglês: A saída para o sucesso

Não era uma simples opção. Cantar em inglês era o significado de necessidade para muitos profissionais da música. Desde o boom das músicas estrangeiras, grande parte proporcionada pelo DJ, ativista pop e radialista Big Boy (Newton Alvarenga Duarte) e os super programas musicais da Mundial 860 AM, do Rio, muitos intérpretes nacionais foram sendo ocultados aos poucos, sobrando alguns afortunados de talento que se imortalizaram. Alguns conhecidos como Roberto e Erasmo Carlos, Jorge Ben, Mutantes e tantos outros remanescentes dos anos 60 ou nascidos de verdade nos anos 70.

Por este caminho alternativo do inglês começaram a enveredar alguns nomes que, de leve, começavam a ganhar notoriedade. O primeiro, pode-se bem dizer, que estourou de verdade foi um cidadão chamado Maurício Alberto Kaiserman. Por este nome ninguém sabe quem é este sujeito. Mas se olharmos para o pseudônimo que usava lembraremos de um dos mais bem sucedidos cantores brasileiros no cenário internacional. Trata-se de Morris Albert, autor de Feelings, e She’s My Girl, sucessos que estouraram no Brasil e pelo mundo em 1974.

Morris não era o único nesta peleja. Outros começaram a surgir e multiplicar-se em busca do Eldorado musical. Terry Winter, Tony Stevens, Dave Maclean, Steve MacleanPete Dunaway, Mark Davis, Chrystian, e até bandas inteiras como Excelsior, Sunday, Lee Jackson e Pholhas. Todos estes e outros menos cotados escavaram uma seara desconhecida no cancioneiro brasileiro e, por incrível que possa parecer, se deram muito bem. Deixaram a história e viraram lembrança de muita gente que pergunta até hoje por onde esta turma toda anda.

Morris Albert, o maior expoente deste movimento, viajando o mundo com “Feelings” e “She’s My Girl” (Reprodução / Globo)

Cantar em inglês, abandonando a língua-mãe, não é exclusividade do Brasil, antes que venham os santos ditos catedráticos da musica tupiniquim tachar de alienados e toscos os que ousaram para tanto. Na Europa, países como Suécia, Finlândia, Holanda, Noruega e Dinamarca descambaram para músicas em inglês. Fácil falar que o ABBA é um bom exemplo disto, já que fazer sucesso em sueco pelo mundo não soa audível para muitos do mundo Pop.

Tanto que foi assim que os dois casais de Estocolmo aproveitaram a brecha dada na regra de línguas no Festival Eurovisão, de 1973 a 1976, para emplacarem Waterloo e conquistarem o certame de 1974 , em Brighton (UK) Este regulamento de uso do inglês como opção a lingua-mãe vigora no Festival até hoje desde 1999, com vencedores sendo registrados tanto em inglês como nas línguas oficiais. De 1966 a 1972 e de 1978 a 1998 eram permitidas apenas canções cantadas nas línguas oficiais de cada um dos países participantes.

O ABBA com a medalha de primeiro lugar no Eurovisão de 1974. Deixar a língua-mãe e cantar em inglês era alternativa para ser ouvido e se dar bem no festival da canção europeu (Reprodução)

Trilhas de novela: “Economizando uns trocados”

A trilha sonora internacional de Anjo Mau, da primeira versão em 1976. Uma polonesa assinou o tema de abertura da trama (Reprodução / Bugrim)

Os brazilian singers eram muito mais do que um movimento que surgiu a partir de uma necessidade e de um novo olhar para a produção musical brasileira. Naqueles tempos, com a popularização das trilhas sonoras de novelas, carecia-se de sucessos para embalar casais das tramas ou outros momentos. Raramente podiam ser encontrados nas trilhas internacionais canções de grupos de sucesso, como Bee Gees, ABBA e Elvis Presley, exemplos mais claros. O problema de pagamento de direitos autoriais para o uso das canções era um dos entraves.

Uma das saídas eram canções de cantores pouco conhecidos de forma massiva internacionalmente. Foi assim que nomes como Stu Nunnery (Lady It’s Time do Go /  Espigão, 1974 / Globo), Anarchic System (Cherie Sha-La-La / Supermanuela, 1974 / Globo) e até a polonesa Urszula Dudziak (Papaya / Abertura de Anjo Mau, 1976 / Globo) ficaram conhecidos, já que pagar direitos por artistas de menor expressão no estrangeiro era mais em conta.

No entanto, na outra mão da estrada vinham os cantores nacionais que versificavam em inglês. Para a Globo, eram simplesmente cantores estrangeiros em uma trilha de novela, mas valendo o preço de direitos para cantores brasileiros, o que foi uma verdadeira saída para o problema. Muitos deles apareceram em inúmeras trilhas sonoras pelos anos 70, o que garantia um excepcional retorno nas canções compostas.

Por muito tempo, Mark Davis (Fabio Jr. Sim! Ele mesmo!), ou era visto na TV discretamente ou junto dos integrantes da banda Uncle Jack. Nas capas de disco, um tanto raro… (Reprodução)

Outra particularidade destes intérpretes era o anonimato. Raramente eram vistos nas capas dos próprios LPs e compactos, ou, quando apareciam, sempre estavam ocultos por uma sombra ou por jogos de luz que dificultavam a percepção do rosto. Exemplos não faltam, como Dave Maclean e Mark Davis, vistos as vezes nas inevitáveis aparições na TV, onde eram celebrados, ora como nomes de peso ora como sucessos produzidos em terras brasileiras que despontavam no exterior.

Depois dos pseudônimos, outros caminhos

A tendência de cantores nacionais cantando em inglês perdeu força no fim da década de 70, quando a produção nacional voltava a achar o prumo e estilos como o Rock e o Pop nacionais começavam a capitular maior parte dos consumidores. Sendo assim, muitos continuaram ostentando os pseudônimos famosos, outros trocaram as canções em inglês pelo português genuíno. Mas outros ainda abandonaram o inglês, o pseudônimo e escreveram uma nova página de história na música nacional.

Três exemplos valem muito bem serem ditos desta segunda revolução. Tony Stevens era um cantor de belas melodias românticas, que abandonou a calma das letras pela vibração dos versos e a força de cantar depois que o interprete voltou a ser, simplesmente, o intenso Jessé, cantor de imortais como Porto Solidão e Campo Minado. Infelizmente, o garoto carioca de potente voz seria ceifado em 1993, num acidente automobilístico.

Outros dois exemplos ainda seguem bem as carreiras. Mark Davis, que chegou a ser vocalista da banda Uncle Jack, desapareceu do mapa. Virou um cidadão de cabeleira vasta e canções românticas como Alma Gêmea ou jovens como 20 e Poucos Anos. Sim, este cidadão é Fabio Jr., e ele não esconde de forma alguma o passado de batalhas dobrando versos em inglês.

Lee Jackson, uma das mais importantes bandas pop dos anos 70, 100% nacional. No fim da onda do inglês, trocaram as letras estrangeiras pelo bom português com Era dos Super-Herois. (Reprodução)

Outro caso bem conhecido é de Chrystian. Autor do super hit Don’t Say Goodbye, de 1973, este jovem filho de Goiânia viveu tempos solos até os anos 80, quando juntou-se ao irmão para formar uma das mais populares duplas sertanejas dos anos 80 e 90. E não era só exclusividade de Chrystian, Ralf também foi cantor de canções em inglês, com pseudônimos como Don Elliot, Ralff e Little Robinson, ganhando até um disco de ouro no México. Hoje, Chrystian & Ralf acumulam na carreira em curso desde 1983 um número de 15 discos de ouro, nove de platina e três de diamante, além do prestigio dentro do universo sertanejo.

De curioso, o movimento dos cantores nacionais que cantavam em inglês virou história e marca da história musical brasileira. Em tempos onde sucesso significava mais do que fama, mas conforto na vida, a saída de abandonar o Aurélio e consultar ávidamente o Oxford foi muito mais do que razão profissional. Sobretudo, foi um novo caminho para se cantar dentro do país, ignorando pechas de caretas e alienados e abrindo estradas dentro de fora do país.

O que seria do Brasil se tivesse explorado este campo mais tempo? Nunca se sabe ao certo, mas fica a certeza de que alguns, pelo menos, tentaram. E se as canções nacionais conseguem ser notadas fora do nosso cercado (independente da qualidade que tem), houve a mão de pioneiros por trás de tudo que aconteceu de ontem até hoje.

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