Entre patroas

(Fotos: Lucas Prudêncio)

Quando Marília morreu, você se lembra?

Já faz um tempinho. Um sobressalto a tarde, perigando ser uma fake news que adoraríamos desmentir.

Fim de sexta-feira pesado. Até mesmo nós da União FM, que não éramos assíduos executores das canções da patroa, tivemos de parar as rotativas. Era uma voz, uma persona da música nacional que havia se calado sem um último gole de gin.

Sexta-feira, né? Patroa… dia propenso… acho que não era para ser o dia, mas tem vezes que as tragédias da vida mundana escolhem dias para acontecer quase que a dedo. Senna também pensou assim enquanto vibrava na sua Lotus encharcada enquanto o Brasil chorava a perda de Tancredo.

Enfim, chegar em casa, a obrigação: a morte da patroa tinha que virar notícia em duas frentes. As fiz, do mais técnico ao mais musical. Eu deveria?

Marilia nunca foi pauta deste jornalista que envereda pela música de todo dia. E lamento, pois é coisa minha, a música dela não faz meu gosto, realmente. Seria hipócrita de disfarçar isso enquanto teço essas linhas.

Mas no fim de todo o expediente, diante da comoção e da responsabilidade na minha mão, reservei um momento nas redes para falar sobre. E está logo abaixo, tal como escrito naquele 5 de novembro:

(André Bonomini)

Pois bem, e passa-se o tempo enquanto a patroa continua em seu efeito Elvis: canções com sua voz e atitude tomam as paradas, são ouvidas a exaustão no misto de choro e saudade, entre bailes e momentos a sós nos quartos das meninas que se levantam e dizem que são grandes mulheres.

Ahh, as patroas… quem são todas elas que ouviram Marília e não abriram-se em largos sorrisos, largando a sofrência versada para serem renovadas num sopro musical? Tantas, quantas, diversas, várias, muitas, que sonham e quebram a cara em mariolas amorosas, é a vida.

E o correr da música de Marília invade os dias de hoje. O tal do “efeito Elvis”, como disse, pois as tantas patroas que enchem palcos hoje como grandes mulheres são arrastadas sem revelia a mergulhar nesse universo empoderado criado por ela. Como se cada melodia, ranhida e misturada entre sofrer e sorrir, fosse uma continuação da obra, um “Atos dos Apóstolos” escrito de tempos em tempos.

Meu nobre Lucas Prudêncio, de novo ele, me apontou o dedo pra falar sobre isto. Inquisitado, observando os slides congelados de suas chapas, o momento das lágrimas na face de duas patroas da noite e outras tantas quando, de súbito, o vulto de Marília aparece nas grandes telas.

Entre Marilia, Maiara e Maraisa corria algo, segundo o que contava Lucas. Percorrendo shows, era possível ver duas damas em seus fardamentos noturnos parando o baile para pedir uma oração musical, um brinde em gin e soda para a irmã que mandava tudo e não cobrava nada, aquela que não estava ali.

Pensa, estamos falando de três, e essas amizades profundas, plenas irmandades, sempre carregam uma tamanha afetuosidade e parceria sem tamanho. Três mulheres, munidas com suas foices, carpindo um lote musical onde ainda se ouvia, no denso ar noturno, o machismo e a subjulgação da figura feminina como a fazedora de vítimas, a cruel, a fraca.

Uma faz verão. Três derrubam montanhas e calam gigantes tombados. Tal como Milionário & José Rico, quiseram também elas lapidarem gargantas em ouro. Assim o fizeram, e tudo parecia sólido demais antes da tragédia. O golpe… será o fim?

Lucas, este testemunha entre lentes objetivas e suores de suas divas, parecia ler os lábios da cantora quase sussurrando um Pai Nosso entre os versos cantados da platéia. Toda noite de labuta, toda noite de baile, uma pausa solene e um lacrimejar com cara de valentia. Duas continuam a obra de uma, milhares continuam a saga de três.

E eu? Só tendo o trabalho de decifrar em letras o que estas sutis notas entre cabarés e seus sistemas costumam deixar passar. Entre amores, dores, suores, beijos e flores. Entre patroa e patroas, só observando sem ouvir, anotando estas sensações, estas histórias, partes da música.

Ah, a música e suas facetas! Que facetas!

Ah, Marilia, desculpa escrever sem merecer, mas tem coisas que não devem-se cobrir de cegueira.

Desculpa, Marília, é preciso escrever, reverenciar, orar, chorar. É preciso empoderar, amar, quebrar, levantar, secar, correr, beijar, azarar, gritar.

É preciso viver. E isto é viver.

Sem mais.

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