Hedonistas modernos

Até aonde vai o limite do ser humano na sua autopromoção?

Quando que esta autopromoção se transforma em abuso, egoísmo, egocentrismo e, quando mais, preconceito, homofobia, etarismo, machismo, intimidação?

Fiquei imaginando isso quando, num dia de manhã no caminho para o trabalho, tive a frente cortada no trânsito por um motorista apressado. Felizmente, o acidente não houve, mas algo me despertou esse pensamento aleatório, mas sério.

O motorista do carro que me cortou a frente, com seu olhar vidrado para frente, sem pensar dos lados, sem sensibilizar-se com o perigo que poderia ser ao fazer uma manobra como aquela. O que importa? Eu quero sair dessa rua e seguir para onde vou, ao meu jeito, a minha maneira, dane-se os outros.

O profeta carioca, que virou canção para Marisa Monte, já dizia que “gentileza gera gentileza”. Da mesma forma, o contrário gera o contrário: individualismo e egoísmo geram as mesmas coisas e muito mais. Não a toa, este senso comunitário, de pensamento conjunto pelo bem comum, desaparece há tempos, sobretudo depois desta onda de agressividade pela imposição do pensamento individual disfarçado de “comum”.

Ao abrir as redes, a percepção maior de que este egoísmo e individualismo humano é mais latente: não digo o que cada um posta e se mostra nas redes, afinal cada um sabe de sua forma de mostrar-se para o mundo, compartilhar o seu para os amigos em troco de comentários e curtidas. Falo do exagero, o exagero que passa ao limite do correto, do reto, do humanamente são.

Com orgulho, há quem faz dos seus preconceitos e pensamentos segregacionistas e individualistas o grande cartaz de todo dia. Para estes, não há vergonha de encontrar casais homoafetivos nas ruas para execra-los sob a lente da ameaça e das câmeras de celular que enquadram suas palavras podres contra o amor livre, fazendo valer o seu individualismo e sua razão distorcida.

É nas redes, e onde for, que o ser humano parece esquecer da razão para partir para esta ignorância vestida de exibição. Dias atrás, talvez imaginando fazer risos, uma dita cantora que se traveste de garota de 15 anos (se é que pode-se chamar de cantora) abria a boca solenemente para dizer que o rebolado erótico lhe dava mais dinheiro do que o que o sofrido professor recebia mensalmente, enfrentando em sala quem dava eco a este discurso infantil e imaturo.

Mais a frente, esta ignóbil sensação de individualidade de seus pensamentos e jocosidades dava voz para duas moças ditas adultas de pensamento abrirem fogo contra uma mulher de 40 anos, determinada em seus sonhos e trabalhos, mas calada com lágrimas pela voz etarista e debochada daquelas cidadãs ditas “adultas” em seus métodos.

E tudo isto para culminar, em rede nacional, nas ações de dois homens, colocando pra fora toda sua misoginia e instintos tribais, entre atos de importunação e agressão sexual sem medo das câmeras. Isto tudo para, depois, serem flagrados nos famosos “pedidos de desculpas” que não salvam mais ninguém (ou não deveriam salvar) da fogueira do cancelamento, as vezes necessário.

Desculpas, pra que? Esse individualismo tornado ação já fez seu estrago. Não tem sentido se compadecer diante de câmeras para expressar desconstrução e arrependimento se você já o fez, mostrando o verdadeiro eu para quem quisesse ver. Da mesma forma, que adianta ficar em silêncio se você já mostrou que, com ele, mostra aquilo que cansamos de ver no corre contra as fake news: a tal da revolta por uma suposta “censura” de suas palavras mentirosas e distorcidas.

Há tempos que as redes, neste processo, praticamente viram terras sem lei, sem nem mesmo prover ações efetivas para frear a impunidade que dá a certeza, aos seus realizadores, de que qualquer ato nefasto feito para angariar curtidas seja reprimido. Mas a punição de redes não é o meu objetivo direto nesta fala, é outra coisa.

Além desta brecha, por que agimos com tamanho egoísmo visando o hedonismo de nossas ações nefastas? Sentir-se feliz por encontrar outros distorcidos no mundo que pensam o mesmo que eu e cultuam os mesmos comportamentos que eu? É a carta-branca que os exemplos, vindos de onde eles vem, nos dão para romper a barreira do certo sob a pecha do “politicamente correto ser chato”, permitindo execrar a mulher, o homoafetivo, os mais velhos, os que andam na linha.

Falando em mulher, o exemplo maior desta liberdade é o quanto que os asnos da tal “red pill” arrecadam pelas redes e mundo afora encontrando machistas de diversas criações para dizer que elas são “sua propriedade”, aplicando toda forma de subjugação para satisfazer seus orgasmos mentais e físicos. E o que choca é como isto cresce dia a dia, como se a barreira do crime e da violência não existisse, fosse invenção “comunista” dos “maricas” que os cercam.

É difícil, não há freio, está-se cercado pelos hedonistas que não medem limites as suas ignorâncias. E pensa que tudo isso começou, para mim, da forma mais inocente: uma cortada de frente no trânsito. Como estamos doentes.

Complicado, mas é preciso viver e denunciar seus praticantes, faze-los pagar pela sua irresponsabilidade. E, por que não, cancelar quem não entende este recado? Talvez, uma fogueira raivosa, mas se nos círculos ignorantes é dito que é preciso ações para “dar o exemplo”, que se dê pela arma que eles próprios usam, e a mais forte possível.

Enquanto isso, quantas coisas mais veremos destes hedonistas modernos?

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