Som n’A BOINA #59: Everywhere (Chrystian)

Emoldurar momentos mentais: a musica tem uma capacidade única de colocar pequenos recortes de uma vida em melodias únicas, repletas de significados e memórias que regressam sempre que os primeiros acordes de um som aparecem no ar.

Impossível dizer que não, duvido que você, do nada, lembre de algo totalmente fora da realidade de um dia graças a uma canção em especial, sempre acontece. Um amor antigo, um lugar especial, um acontecimento único, e tudo isso seja do lado bom ou ruim do recordar, sempre aparece latente e sem avisar, basta o primeiro acorde da música rolar e vamos viajar no tempo.

Nestes últimos dias, tem aparecido de forma recorrente na minha playlist um som feito aqui na terra-brasilis mas que facilmente poderia ser enquadrado em qualquer boa produção da gringa. Foi em 1983 que ele nasceu, ano este que seu cantor e criador deixava de vez o filão Pop para voltar-se ao estilo que, de certa forma, sempre o acompanhou: o bom e velho sertanejo dos tempos de inocente criança goiana cheia de sonhos.

Falo de Chrystian, da qual nos despedimos tão inesperadamente nos últimos dias e cuja trajetória na canção sempre será recordada em dois filões distintos. O primeiro, o Pop engajado na lingua inglesa que foi o seu primeiro rumo musical e lhe rendeu tantas glórias quanto histórias inusitadas de um segmento que, por vezes, ocultava seus realizadores em nome da mística do “estrangeirismo”. O segundo, o sertanejo cantado desde os tempos das serestas e amplificado ao lado do irmão, tornando-os uma referencia dentro do estilo e donos de inúmeras inovações no ramo.

O José Pereira da Silva Neto, Zezinho no seio familiar, teve um início cercado pelos limites de uma capital idílica como era a Goiânia de outros tempos. Foi na enlouquecida São Paulo, entre tempos de fome e vacas magras, que o garoto afiou o inglês que parecia não ser dele e virou fenômeno. Em uma época que cantar “de língua enrolada” rendia bons caches e trilhas de novela, o tal do Chrystian do selo RGE/Young emplacou seis sons em soundtracks globais, mesmo que aparições e entrevistas eram raríssimas, o anonimato era necessidade da construção artística.

Não que tenha sido tempo de um fracasso pessoal em nome de um sucesso. Talvez, se pensarmos nessa lógica, Chrystian meio que “engoliu” a realidade no inglês, o que não é verdade. E também não se pode desmerecer seus feitos musicais nos anos 1970, sempre tão difíceis e superados com certa criatividade pelos que por lá militaram. Cantar em inglês fazia parte desse metier, e nisso o Zezinho tirou de letra e marcou época.

O som em questão, esta bela “Everywhere”, foi prensada em 1981. Era já o fim de sua estada neste estilo, rendido pelo desejo de fazer nova estrada no sertão e ao lado do jovem irmão Ralf. Foi um tiro certo e um novo sucesso, partindo para uma nova estrada ruma a uma tal “Nova York”, com uma qualidade de arranjo tão bem construído que, acredite, mesmo sertaneja na raiz poderia rodar em uma emissora adulto-contemporânea sem maiores impedimentos.

(FONTE: André Piunti)

Os irmãos eram diferenciados, e Chrystian guardava na manga suas invenções e talento, tanto pra primeira como para uma bem solicitada segunda-voz. Mas ainda insisto em revisitar com mais minucia este período inglês do garoto goiano. Igualmente criativo, com uma produção muito bem acabada e responsável por páginas memoráveis dele e de muita gente. Gente esta que ouve “Don’t Say Goodbye”, “More Than You Know” ou “Lies” com corações saudosos de qualquer coisa.

Já “Everywhere” é parte destas minhas molduras. Não recordo como a descobri, talvez num belo “por acaso” das pesquisas musicais que faço. Certo é que, ao fechar os olhos na suavidade da melodia e no belo coral do refrão, é como recordar minha primeira passagem por uma das faixas de asfalto mais lindas deste país: a chamada “rota do sol” que leva a serra gaúcha, no inverno de 2023, curiosamente 40 anos depois do lançamento do que pode ser dito o último disco de canções em inglês de Chystian (“10 Anos Depois”).

O cantor já enveredava, junto do irmão, no mundo sertanejo quando esta coletânea nasceu, e “Everywhere” é uma página imensamente feliz deste trabalho: como dissera, arranjo bem acabado e simples, suave e em crescendo; um coral fabuloso no estribilho e a sensação de paz e tranquilidade permeada por uma gostosa apoteose musical.

Talvez isto explique as boas sensações ao ouvi-la, recordando o subir da serra num fim de tarde em meio-de-semana. Um ano depois de despedir-me do amor, longe de casa pelos meus próprios meios, só eu e meu carro entre paredões de rocha, propriedades rurais, as famosas “tendas” gaúchas e a sensação de que um novo limite se conquistava pelas próprias pernas. Não duvidem, me pego repetindo a faixa várias vezes em dados momentos, a história do “emoldurar momentos” que tinha dito.

Enfim, Chrystian conseguiu fazer comigo o que talvez fez com minha mãe, quando ela ouvia seus sucessos setentistas recordando as paqueras. No meu caso, em meu eu poético, o cidadão de Goiânia deixou impressa uma melodia entre as várias paginas musicais que sempre estarão na playlist das memórias de minha vida. E com gratidão, faço minha reverencia ao homem que escreveu sua história no som brasileiro, em duas línguas, em dois estilos, em todos os momentos, e venceu.

Por estas e várias, no sertão e no Pop, valeu Chrystian!

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