Atenção, Brasil, Atenção! Com vocês o mais completo comunicador da televisão brasileira, Flávio Cavalcanti!
Domingo a noite, auditório lotado, holofotes ligados, orquestra afiada para receber quem comandaria a grande atração da noite. O locutor anuncia, a direção dá seu sinal e as palmas sobem. Diante dos espectadores ansiosos um tipo um tanto esguio, porte mediano, de terno bem cortado e um indefectível óculos. Por trás das lentes um sujeito de fala mansa mas de pulso firme quando o assunto esquentava ou pedia. Ele toma seu lugar à tribuna transparente, a orquestra o acompanha, era outra noite de assuntos polêmicos, debate, música e alguma alegria inocente.
Era mais uma noite em que o auditório – seja ele da TV Rio/Record, da Tupi, Band ou SBT – estava sob o comando de um dos jornalistas e apresentadores mais marcantes de uma geração. Carioca da gema, nascido no bairro do Rocha, filho de um professor de medicina e um renegado aos estudos que parou num colégio de padres, adotando ali a postura professoral e de autoridade que o marcaria.
Jornalista de polêmicas, históricas folclóricas, música no sangue e em discos quebrados, momentos de risos infantis e colecionador de amigos e inimigos. Se você não conhece, vai ficar curioso em saber quem é esse cidadão chamado Flávio Cavalcanti.
O bancário do Banco do Brasil que dividia a vida entre papeis e cotações com o mundo que mexia muito mais com seus sentidos: A comunicação. Era periodista do jornal carioca A Manhã, assumindo também os microfones das rádios Tupi e Mayrink Veiga. Chegou a televisão em 1955, pela TV Rio. Era repórter no programa Noite de Gala, sua primeira de tantas experiências com a televisão que o imortalizaria.
Flávio pode-se dizer que era um dos últimos exemplos de jornalista ferino sem medo de dizer o que pensava ou acompanhava no país e mundo diante das lentes das câmeras. Seja como crítico musical ou um caçador de histórias estranhas ou preocupantes para o Brasil daqueles tempos, não faltavam palavras e visões, algumas atitudes que faziam amigos ou recheavam a coleção de inimigos, que carinhosamente o chamavam em acessos de raiva, entre outros palavrões, de dedo-duro.
O mundo da canção foi um destes campos. Sem perder tempo, Flávio detonava o que não agradava os ouvidos. Não tinha pudor de dizer na lata que canção A ou B era uma tremenda droga, ao ponto de quebrar discos das canções defenestradas ao vivo e sem cortes. Caetano Veloso foi cravado como porco, Chitãozinho e Xororó e tantos outros tiveram LPs destroçados ao vivo (coisa que ainda espero ver em imagem de arquivo), fora o bombardeio quando necessário (ou quase sempre) ao Rock. Apesar de tanto, Flávio tinha seus admiradores no meio, e até o Rock tão vigiado e apedrejado lembrava – mesmo que caricatamente ou ofensivamente – do cidadão de óculos que falava sobre aquele tal “ritmo da guitarra elétrica”.
Para muitos artistas do som, também, era a chance de brilhar pela primeira vez frente as câmeras. No entanto, encarar Flávio não era o único receio de quem colocava a voz em jogo no ar, mas também o juri a sua frente. Era o primeiro programa a contar com uma composição de figuras do mundo artístico para julgar os novos talentos, deslumbrados com revelações, apontando melhorias ou se entortando com desafinados.
Nas cadeiras, nomes como Mister Eco, Carlos Renato, o estilista Dener, Sonia Abraão, Wagner Montes, Aracy de Almeida e a doce Marcia de Windsor que o fazia descabelar-se sempre que tascava suas constantes notas 10, mesmo que o distinto mancebo julgado não merecesse tanto.
Veja um destes juris em ação:
No entanto, se proezas e polêmicas valessem como medalhas, Flávio estaria com o peito cravejado tal como um soldado disposto a partir à guerra, como muitas vezes fazia com as opiniões e críticas ferinas e retas. Não escondia nos lábios o que pensava ou o que via ante as lentes dos óculos, embora em vezes exagerava nas doses de sensacionalismo com histórias até escabrosas.
De incorporação de exu de umbanda ao vivo aos casos ufológicos históricos (como o Caso Karran, de 1978), debates sobre a pena de morte, casamento de padres, tudo endossado com convidados das áreas em destaque. De tudo um pouco, a audiência batia palmas e as histórias se multiplicavam.
Uma destas tantas passagens foi ainda na mocidade, quando ainda estava começando na TV em 1961. Armado de uma certa ousadia, Flávio rumou a Washington junto do colega apresentador Murilo Néri e do jovem Rubem Medina para um feito que até para a TV yankee era difícil: Uma entrevista com o então presidente John Kennedy.
Contando, ninguém acredita, mas o trio conseguiu o sonhado encontro com o mandatário americano em um furo histórico para a TV Rio naqueles idos. Infelizmente, para a tristeza dos historiadores da TV, o registro deste feito fica restrito apenas a uma foto, já que o tape da entrevista se perdeu no tempo.
Outra destas tantas rendeu um gancho de dois meses diante a censura implacável nos tempos do regime militar: Em 1973, já na Tupi que tanto amava trabalhar, trouxe a tela a história de um homem que, invalido das funções (leia-se impotente), emprestava a mulher ao vizinho.
Na maior naturalidade, perguntando e sendo respondido como uma informal conversa, que para o recatado garoto que vinha de uma escola de padres podia soar como afronta. A censura viu, se arrepiou e podou, num caso que foi destaque na imprensa nacional e que, hoje, não consta um mínimo registro.
Alias, Flávio pode-se dizer um “traído” pelo regime. Apoiou os militares durante o golpe em 1964, talvez acreditando ingenuamente que a abertura democrática seria em breve. No entanto, o tempo passou e o Brasil só veria a democracia propriamente dita 21 anos depois da canetada de Auro de Moura Andrade.
Cavalcanti era um legítimo anti-comunista, não escondia, mas também não admitia os desmandos dos poderosos de seis estrelas que outrora havia aplaudido. Em tempo, chegou a proteger na própria casa a atriz Leila Diniz, famosa pela forma aberta e livre como vivia e lidava com a vida, e que por isso era alvo das vigias dos militares após uma entrevista polêmia para O Pasquim.
O senhor dos óculos, aqueles que insistentemente queriam sair da face, viveu tempos intensos na TV. Diferente de tantas celebridades daqueles tempos Flávio era um avô de respeito. Casado e bem casado com dona Maria Isabel (Belinha) Cavalcanti, pai de três filhos – Júnior, Fernanda e Márcia, sendo Flávio Júnior executivo de televisão atualmente – era dono de pensamentos conservadores mas que não escapavam de cutucões certeiros na vida complicada do brasileiro nos anos de chumbo.
Entrevistava seus convidados – de celebridades a figurões políticos – nos olhos, lado a lado, perguntando com a maior naturalidade, e pedia arrego por momentos com um dos gestos mais icônicos da TV brasileira. O dedo em riste no ar e solicitando a produção: Nossos comerciais, por favor!
Sairia da Tupi no limiar da emissora de Chateaubriand, em 1980. No mesmo ano, apresentou o Boa Noite, Brasil na Bandeirantes por quase três anos, chegando em 1983 ao jovem SBT de Silvio Santos, antigo rival de audiência que provavelmente sorria ao ver a chegada de um velho colega de câmeras que arrebanhava, certa feita, impressionantes 72 pontos no IBOPE nos anos 70, claro que sendo o primeiro programa transmitido via Embratel no país. O jeito polêmico continuava, mas talvez com uma pitada de leveza, até de certa serenidade mesmo sendo um cidadão na casa dos 60 anos.
Mas era o estresse de tempos tensos, das vigias do regime e dos desafios encarando situações e adversidades entre ditos inimigos que estava cobrando seu preço. O coração de Flávio, dividido entre a ternura da vida familiar e o beat acelerado da tensão, estava falhando.
Em uma noite de 1986, mais precisamente no dia 22 de maio, o mesmo frenesi, os holofotes, o óculos caindo e o juri armado. Os cabelos grisalhos não queriam demonstrar a idade, mas a saúde debilitava-se. Flávio se sentiu mal, abandonou o programa contra a vontade e foi levado ao hospital. Não sairia mais de lá, morreria no dia 26, aos tão ainda poucos 63 anos de vida.
O SBT se calou por um dia, enlutado com a perda do querido colega e do ícone da TV nacional que era calado com a única coisa que poderia o calar: A morte. Os amigos sentem a falta até hoje, os inimigos sacodem os ombros com respeito, embora muitos que o viram hoje o veem em outros planos. A reverencia continua, a história está escrita e Flávio, aquele garoto tímido do Banco do Brasil, virou legenda da televisão brasileira. A admiração de muitos (até deste jornalista) pela saga de Cavalcanti espanta, causa curiosidade, esbugalha os olhos, impressiona, seja você admirador ou defenestrador desta figura sem igual.
Quer se aprofundar, recomenda-se a leitura do livro-biografia Um Instante, Maestro!, de Léa Penteado. É de 1993, mas vale muito! Só clicar no negrito.
No final desta odisséia, uma receita dita por Flávio em um de seus programas pelo SBT para o tal bolo da felicidade. Tome nota:
Permita-me, Flávio, mudar sua frase por momento… Nossa reverencia, por favor!
André, uma postagem melhor que a outra.
Me emocionei de ver esse grande ícone da TV Brasileira. Tinha algumas atitudes de certa forma ruim, mas era de um coração profundo, uma voz inigualável, um pai, marido, cidadão exemplar. Se tinha algumas agressividades nas atitudes, foram porque as agressões do cotidiano sempre foram superiores, porém não se calava. Era humano, sensível e corajoso. Se um homem dócil como era, as vezes tomava atitudes duras, porque a situação as convinha.
Grande Flávio Cavalcanti de tantas lembranças.
E para finalizar “A receita do Bolo” essa sim faria bem a todos os humanos e então não precisaria de um programa as vezes tão duro como em alguns instantes o era. Se está estressado vá pescar, ou se a receita d o bolo não fizer efeito, procure DEUS!
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história
Simplesmente único,o maior comunicador da história