Imprensa e revolução – O 25 de abril por dentro da RTP

Atenção senhores espectadores. Muito boa tarde! A partir deste momento, o Movimento das Forças Armadas controla totalmente a rede de emissoras da Radiotelevisão Portuguesa.

Era com esta frase, dita na mais absoluta calma e polidez de um jornal de bancada clássico, que Fernando Balsinha (acima) abria junto de José Fialho Gouveia os trabalhos do telejornal Ultima Hora, precisamente as 18h40 da tarde de 25 de abril de 1974, nos estudos da Radiotelevisão Portuguesa, a RTP. Nas casas onde o noticiário era recebido, um clima de alívio e alegria, pois naquele momento Portugal soltava o fôlego trancado desde as primeiras horas da manhã com o início do episódio fabuloso que desenhou-se naquele dia em especial, hoje conhecida como a Revolução dos Cravos.

Pareço chato a cada ano, mas não escondo dos amigos que é um dos assuntos que mais me enche de curiosidade na história mundial. O 25 de abril, para grande parte dos portugueses, é dia de festa e reflexão sobre tudo o que foi conseguido com o fim da mais longa ditadura fascista da Europa, começada com Antônio de Oliveira Salazar em 1932 e encerrada a força nas mãos de Marcello Caetano, naquele dia nublado e longo. E tudo começou na noite anterior, tendo o rádio, e depois jornais e TV, como aliados do processo.

Ultramar e isolamento: Onde tudo começou?

Soldados portugueses nas matas de Angola. A Guerra Colonial minava famílias e a economia, que revertia fundos para sustentar combates que já não se tinham condição prática para se manter (reprodução)

Segundo o que diz a história, o Movimento das Forças Armadas (MFA) já arquitetava a ação desde o início da década de 70, por conta de três fatores primordiais: A deterioração da economia, a censura e isolamento promovidos pelo governo de Caetano diante do continente e, o mais importante de todos, o fracasso constante das forças portuguesas em conter as rebeliões nos territórios do ultramar na ÁfricaAngola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique – em curso desde 1961, com custos altíssimos monetários aos cofres lusitanos e de vidas a várias famílias, seja de um lado ou de outro do front. Portugal era um dos últimos países que mantinha colônias no continente africano, contra todas as tendências independentistas em outros países do entorno.

O Movimento era formado, na grande maioria, por capitães que haviam participado das guerras no ultramar e descontentes com a continuidade dos conflitos, praticamente sem solução pela mão lusitana. Era inevitável que uma ação tinha de ser tomada dentro de casa e começaria, estrategicamente, com a participação da comunicação portuguesa, ainda uma criança se comparada ao resto da Europa. Para sinalizar o começo das operações, duas senhas foram programadas, eram duas canções que dariam o sinal oficial para as tropas mobilizadas em pontos estratégicos do país iniciarem os movimentos.

Próximo das 23h, o MFA tomava conta de duas das emissoras dos Emissores Associados de Lisboa. Na Radio Alfabeta, “E Depois do Adeus”, canção escolhida para o Eurovisão de 1974 de Paulo de Carvalho (acima) solicitou posições. A meia-noite, entra “Grândola, Vila Morena”, música censurada de Zeca Afonso (abaixo), na Radio Renascença. Era o início das operações (Reprodução)

 

Ás 22h55, através de duas rádios (Alfabeta e Renascença, respectivamente) dos Emissores Associados de Lisboa, vai ao ar a primeira senha. A canção E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, muito popular naquele ano por ter sido escolhida como a representante de Portugal no Eurovisão daquele ano, em Brighton, Inglaterra. Era o primeiro sinal, que desencadeia o inicio da tomada de posições a partir dos quarteis. A segunda senha se dá já na madrugada de 25 de abril, precisamente as 0h20. A canção Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, censurada pelo governo por, segundo ele, fazer apologia ao comunismo.

Estava pronto o terreno do golpe necessário vindo das forças armadas. E junto dos quarteis e unidades de segurança pública e polícia política, como a Direção-Geral de Segurança (DGS) eram tomados, com pouquíssima resistência. Ao total, foram apenas quatro mortes, num tiroteio entre soldados do MFA e integrantes da DGS no Largo do Camões, em Lisboa.

Na RTP – Jornalistas e soldados lado a lado

Antiga unidade móvel da RTP, de 1957. Emissora era uma das tantas que tinha de andar conforme a dança dentro das restrições da censura do governo salazarista. A revolução foi como um alívio depois de anos de repressão (Reprodução)
Capitão Teófilo Bento, responsável pelo comando das tropas de ocupação e vigilancia da RTP (Reprodução)

Fundada em 1935 como rádio e em emissões de televisão desde 1957, a RTP era uma das tantas que tinha de andar conforme a música tocada pelos salazaristas no que tangia a informações, notícias e programação. A censura era a lei naquele período e todo o conteúdo, seja ele jornalístico, intelectual ou cultural, era visto e revisto de cima a baixo pelos órgãos censores. Nada passava, as vezes de forma ridícula.

Não é a toa que o MFA incluiu as emissoras de rádio, TV e os jornais na lista das ocupações. Era a partir da imprensa e de forma maciça que a população das grandes metrópoles começaria a tomar noção do que estava acontecendo. As rádios apelavam constantemente para que os estabelecimentos comerciais permanecessem fechados, que todos se mantivessem em casa e que, mais importante, se evitasse a todo o custo o derramamento de sangue, o que conseguiram.

Pela manhã, chegavam os militares da Escola Prática de Administração Militar (EPAM), sob o comando do capitão Teófilo Bento, próxima a RTP, que tomavam a emissora de forma organizada e sem alardes. Nas primeiras horas da manhã, os estúdios de Lisboa já estavam controlados pelas forças da ocupação, sendo perguntados e respondendo com vigor aos jornalistas dos periódicos que por lá passavam em busca de mais informações.

Jornais como O Século, Expresso e República (foto) acompanharam tintin pot tintin cada passo dos acontecimentos do dia 25 (Reprodução)

Os jornais da capital, como O Século e A República acompanhavam seguidamente em várias edições impressas de momento em momento indo as ruas quase quentes das prensas. As diligencias do MFA estavam já aquarteladas cercando o Quartel do Carmo, onde alojavam-se o presidente Marcello Caetano e membros da administração ainda resistindo a rendição. Longe dali, outras tropas continuavam a ocupação das outras duas emissoras restantes da RTP, no Porto e em Monsanto.

A tarde se aproximava, tendo as 18h35 da tarde o governo de Caetano rendido-se diante do capitão Salgueiro Maia, após a chegada do general Antônio de Spinola ao Carmo. Era hora então, depois de tantos jornais impressos e radio atento, da televisão falar, de Lisboa poder falar, como diria Fialho Gouveia.

Havia dificuldades. Na hora prevista para entrada ao ar não havia sinal de Monsanto. Desencontros entre as diligencias e não se sabia se a emissora estava verdadeira e totalmente ocupada. Uma dissidência de esquerda do movimento era quem controlava a emissora, cortando as tentativas de formação da rede o que gerou um princípio de tensão no início das transmissões. No fim, como um grande alívio, a emissora de Monsanto foi controlada pelo Movimento oficial, liberando assim Fernando Balsinha para o início da histórica emissão.

Eram 18h35 quando o carro blindado do exercito portugues deixava o Quartel do Carmo, levando consigo o então deposto presidente Marcello Caetano. Era o último ato do 25 de Abril nas ruas. Na TV, cinco minutos depois, a RTP dava sinal verde para o telejornal que repercutiria os fatos daquela tarde quente em Lisboa (Reprodução)

A transmissão durou a noite inteira, com poucos funcionários trabalhando na emissora de Lisboa, necessitando de um sacrifícios dos poucos que lá estavam. A falta de funcionários na estação da capital não era por medo, mas os constantes apelos para que a população se mantivesse em casa reduziu a equipe ao pouco pessoal que, talvez, ainda estivesse na emissora desde a noite anterior. A transmissão, intercalada com canções e poesias, culminou na alta noite, com a proclamação da Junta de Salvação Nacional, sob o comando do general Antônio de Spinola, direto dos estúdios da RTP em Lisboa.

Rica em imagens e relatos, a transmissão do Ultima Hora está registrada no YouTube, em um arquivo de pouco mais de uma hora de duração. Quem tem curiosidade, vale a pena ver, nem que seja em pedaços:

Fernando Balsinha e José Fialho Gouveia, no comando do mais importante telejornal da história da RTP, mais de cinco horas de transmissão, intercaladas com música e poesia (Reprodução / RTP)

O resto, como se diz, foi história. Outra Portugal nascia daquele momento em diante, algo parecido com um país mais jovem, renovado mas ainda na batalha contra problemas internos e contra antigos preconceitos e pragmatismos. É claro que os tempos atuais na Europa não são fáceis e os caros lusitanos também foram tomados de assalto por eles, seja na economia ou na vida social, mas ano após ano Portugal faz questão de lembrar da forma como lhe é melhor uma das datas mais importantes de uma história que vem sendo escrita desde os tempos das grandes navegações, tão bela e ainda tampouco descoberta.

Feliz foi o jornalismo, da imprensa e do trabalho dos profissionais portugueses naquele dia bem português, como definiria outra vez Fialho Gouveia durante a transmissão. Trabalho este que, também, pode ser encontrado com riqueza de detalhes e registros no site da própria RTP, em um arquivo especial com imagens, áudios das emissoras de rádio e reportagens do dia da Revolução e do dia seguinte. Riquezas histórias sem valor calculado para o dinheiro, e imensamente preciosas para a história.

O mesmo Gouveia ressaltava, infinitas vezes na transmissão de imagens daquele dia durante o jornal, que se tratavam de imagens de momentos verdadeiramente históricos. Ele não mentia, estão ai escritos para sempre graças a força da comunicação, tingidos de verde do exercito e pelo vermelho dos cravos.

Viva, pois, as forças armadas! E, acima de tudo, viva Portugal! (Fialho Gouveia)

 

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