Tenerife: Recordando a maior tragédia da história da aviação

Certo dia, ouvi em um documentário do Discovery que uma tragédia na aviação será sempre será relacionada a qualquer um destes cinco itens: Erro humano, clima, problema mecânico, problema técnico ou algum ato criminoso ou terrorista. Qualquer um destes parâmetros, ou alguns deles combinados, é o responsável por tirar a vida de muitas pessoas naquele que é considerado o meio de transporte mais seguro do mundo. Qualquer tragédia que você pesquisar, um deles estará bem citado.

Agora, entre todas vistas no mundo até hoje, apenas uma envolveu todos os parâmetros juntos, direta e indiretamente. Foi há 40 anos atrás, na bela ilha de Tenerife, no arquipélago das Canárias, pertencentes a Espanha, quando dois Boeing 747 numa pista pequena, erros de comunicação e tempo péssimo causaram uma tragédia sem precedentes que ceifou a vida de 583 pessoas e feriu outras 61, os únicos sobreviventes da pior tragédia da aviação em todos os tempos.

Para você ter uma ideia dos números assustadores do desastre de Tenerife, basta compara-la ao pior desastre aéreo brasileiro: O do voo 3054 da TAM, em 2007, quando 199 pessoas (187 no avião e 12 em solo) perderam a vida no choque do Airbus A320 contra a sede da agencia de cargas da companhia depois de derrapar sem controle na pista do Aeroporto de Congonhas. Na ilha espanhola, a catástrofe teve grande impacto, sobretudo na aviação comercial, que lembra da tragédia com ar sombrio e de temor.

Um atentado, a pressa e um aeroporto lotado

Famosa pelas praias e belezas naturais, as Canárias chamam muitos turistas para a visita, especialmente nas duas principais cidades do arquipélago: Las Palmas (foto) e Santa Cruz de Tenerife, onde ocorreu o acidente (Reprodução)

Toda a sequencia de erros teve lugar na pista principal do Aeroporto Los Rodeos,
em Santa Cruz de Tenerife, no dia 27 de março de 1977, por volta das 15h da tarde
daquele domingo. Desde as 13h, encontrava-se no aeródromo o Boeing 747 (PH-
BUF) da companhia holandesa KLM, que trazia consigo turistas para curtir um
período de descanso neste tão procurado resort próximo a costa noroeste da África.

As sete ilhas do arquipélago, constituídas de afloramentos vulcânicos, são de
controle espanhol desde os tempos das navegações. Tem autonomia e governo
próprio desde 1982 mas possui leis e outros elementos administrativos sob as
ordens de Madrid. As principais cidades do arquipélago são Las Palmas e Santa
Cruz de Tenerife, localizadas em duas ilhas diferentes, cada uma tendo um
aeroporto. O acesso estrangeiro às ilhas é feito apenas por via marítima ou aérea e
a vinda de turistas é uma das principais fontes de renda de muitos habitantes do
local.

O Boeing 747 prefixo PH-BUF da KLM. Estava desde as 13h em Los Rodeos depois de ter a rota desviada de Las Palmas, cujo aeroporto havia sofrido um atentado provocado por um movimento separatista (Reprodução)

A temporada de veraneio de 1977 estava apenas começando quando, naquele
domingo fatídico, muitas das aeronaves que destinavam-se para Las Palmas tem o
curso de voo alterado para Los Rodeos, em Tenerife, por ordem dos controladores
de voo. O motivo fora duas bombas detonadas no saguão do Aeroporto de Las
Palmas por um movimento separatista em ação na ilha (Movimento pela
Independência e Autodeterminação do Arquipélago das Canárias – MPAIAC), um dos
tantos que buscavam a independência da Espanha, como o antigo grupo separatista
basco ETA.

Entre estas aeronaves estava, além do avião da KLM, também mandado para
Tenerife por conta do atentado, o Boeing 747 (N736PA) pertencente a Panamerican
(Pan Am). A aeronave fazia o voo fretado PA1736 proveniente do Aeroporto de Los
Angeles e vindo de escala no Aeroporto JFK, em Nova York. A bordo estavam 394
pessoas, sendo 378 passageiros e 16 tripulantes. O pouso foi sem maiores
problemas, mas especialmente naquela tarde, por conta do atentado, mais de 50
aviões estavam na pequena pista de Los Rodeos, que agora estava ainda mais
cheia com a chegada do 747 da Pan Am.

O Boeing 747 N736PA – Clipper Victor – da Pan Am. Aeronave era a quarta na posição de saída, logo atrás do jumbo da KLM. Tinha sido desviada pelo mesmo motivo do avião holandês para a ilha (Reprodução / Airliners.net)

Ao pousar, foi pedido pelo controlador de voo de Los Rodeos que o Boeing da Pan
Am fosse deslocado ao final da pista, onde já achavam-se parados mais três aviões:
Um Douglas DC-9 era o primeiro seguido por um Douglas DC-8. Atrás deles estava o
gigante da KLM, tendo ao comando o experiente piloto Jacob Van Zanten, homem
de grande habilidade com mais de 12 mil horas de voo e piloto-chefe da KLM,
sendo o principal instrutor de novos pilotos, além de ser garoto-propaganda
num anuncio da companhia em sua revista de bordo.

Naquele momento, o experiente comandante estava nervoso. Por causa de tantos desvios, os passageiros do voo da KLM (248 pessoas, sendo 235 passageiros e 13 tripulantes) já aguardavam com certa ansiedade para sair de Los Rodeos, e um dos ansiosos era o comandante Van Zanten. Ele sabia que se não decolasse até as 19h (e procedimentos de decolagem, por vezes, são demorados) teria de trocar a tripulação, que já estava passando do tempo regulamentar de trabalho, prevista nas normas holandesas. Outra tripulação teria de vir da Holanda e isto atrasaria ainda mais a partida do voo para o destino definitivo: Las Palmas.

Capitão Van Zanten como garoto-propaganda da KLM. Experiente, era o chefe dos pilotos e responsável pelos treinamentos. A pressa do capitão seria um dos fatores para a tragédia (Reprodução)

O objetivo era sair de Los Rodeos com os passageiros, pousar em Las Palmas,
desembarca-los e retornar para Amsterdam. Pensando em economizar tempo para
reabastecer em Las Palmas, Van Zanten pede para abastecer a aeronave ali
mesmo, em Los Rodeos, algo que se viu depois desnecessário já que havia
combustível suficiente para o regresso à Holanda. Mesmo assim, o comandante
ordenara a colocação de 55 mil litros de querosene no tanque do 747.

Enquanto isso, no Boeing da Pan Am, que também fazia escala em Los Rodeos, o
comandante Victor Grubbs avaliou que o fechamento em Las Palmas não seria
prolongado e, por isso, não liberou os passageiros para o pequeno terminal de
Tenerife, evitando abarrotar ainda mais as instalações. Logo após, o 747 da KLM
recebia ordem para taxiar pela pista depois da saída dos dois aviões a frente. Ele
se preparava para a decolagem e já estava angustiado com o tempo perdido. Ao
avião da Pan Am, pediu-se que buscasse taxiar e entrar na terceira pista de recuo a
esquerda, para liberar espaço para o jumbo holandês.

No entanto, o comandante Grubbs equivocou-se na contagem das pistas. Tendo
passado a primeira pista de recuo (C1), o piloto da Pan Am recebe a instrução da
torre de que entre na terceira pista a esquerda. Existem quatro pistas de recuo e,
sendo assim, ele contara, ignorando a C1, que deveria entrar na C4, a última pista de
recuo. No mesmo momento, como que fosse uma coincidência macabra, uma pequena garoa começa a cair e um denso nevoeiro desce por sobre o aeroporto, algo que nas Canárias é normal, já que as alterações climáticas nas ilhas são muito rápidas.

A única foto dos dois jumbos em Los Rodeos, ainda aguardando para taxiarem pela pista. Abaixo, uma reconstituição da posição das aeronaves em digital Reprodução)

Fora a confusão de comunicação entre o Pan Am e a torre, estabelecia-se também
uma confusão entre o Boeing da KLM e a torre. A aeronave já chegava ao fim da
pista e teria de fazer um giro apertado de 180 graus para apontar e iniciar a
decolagem. Van Zanten, apressado, já começa a mover as manetes para decolar,
mas seu co-piloto o questiona, lembrando que ainda não tinha ordem para iniciar o
procedimento. É pedida a autorização à torre, mas não se entende nada. Fala-se até hoje em confusão de idioma entre espanhol e holandês, mas segundo o que é preconizado, os operadores de torre são obrigados a falar o inglês, a língua única usada em voos internacionais.

Na verdade, uma anomalia de ondas radiofônicas chamada de batimento heteródino – sobreposição e mistura de frequências – impediu qualquer entendimento entre a torre e o Boeing da KLM. O 747 da Pan Am finalmente chegava a pista de recuo C4, mas a manobra de entrada no local era apertada e difícil e o avião estava lento. Para o comandante Victor Grubbs a assustadora silhueta do Boeing da KLM soou como alerta. Eles podiam ouvir a frequência dos holandeses falando que estavam em decolagem, e mesmo com os protestos dos pilotos da Pan Am nada mais podia ser feito, além do problema com o rádio, o controlador não via nada em pista por conta do nevoeiro em Los Rodeos.

Aconteceu. A pressa de Van Zanten, o nevoeiro, os problemas de comunicação com a torre e o equivoco do capitão Victor Grubbs, da Pan Am, em tomar a última pista de recuo. O choque foi inevitável (Reprodução)
O comandante Victor Grubbs, já fora do avião sinistrado, observa impotente a tragédia (Reprodução)

No rádio da KLM, o desespero da Van Zanten era latente ao ver a sombra do 747 da Pan Am a sua frente. Era tarde demais, mesmo puxando todo o manche para cima, o Boeing holandês acabou atingindo em cheio o avião americano. Os trens de pouso do avião holandês rasgaram o teto da aeronave yankee, o tanque de querosene – recém abastecido até a tampa – se rompeu em uma bola de fogo, o que dividiu o jumbo em três partes. A torre ainda não fazia ideia do tamanho do acidente até ser alertada por pilotos próximos a pista, que diziam ver chamas e ferragens no local. Um caos!

Os restos da tragédia

Do jumbo holandês não sobrou ninguém. Todas as 248 pessoas no jato morreram instantaneamente, seus corpos estavam mutilados, carbonizados e destroçados, espalhados junto aos destroços da aeronave a cerca de 150 metros a frente do local do choque. Já no 747 americano, 70 pessoas conseguiram escapar milagrosamente da fuselagem em chamas e dos destroços. No entanto, o socorro tardio (as equipes se dirigiram ao avião da KLM antes) e a pouca estrutura de resgate da ilha não evitaram que nove destes sobreviventes morresse horas mais tarde, restando apenas 61 pessoas que escaparam feridas do que restou do Boeing da Pan Am.

O pavoroso cenário da tragédia. Dois incêndios violentos desencadeados, mobilização de resgate insuficiente, mas ainda assim 61 sobreviventes, todos do avião da Pan Am Reprodução)

Curiosamente, uma das tripulantes do jumbo da KLM, a comissária Robina Van Lanschot, escapou do voo mortal. Ela tinha decidido ficar na ilha para encontrar o namorado que lá estava. O fez poucas horas de retornar a aeronave, numa decisão que salvou a vida dela. Entretanto, ela estaria presenciando o clima macabro ali presente, especialmente quando as autoridades espanholas começavam a reunir os restos das aeronaves e o que sobrou dos corpos dos tantos mortos no momento do acidente.

Era praticamente impossível identificar a todos com o estado dos cadáveres. Naquele tempo, só haviam disponíveis para identificação científica os exames de arcada dentária e, na base do olhômetro, os objetos pessoais das vítimas, como joias e relógios. Ainda mais, as autoridades espanholas haviam confiscado todas as joias das vitimas, numa decisão até hoje inexplicada. Além disso, foi ordenada também a remoção dos corpos da ilha em 48 horas, ameaçando de enterrar a todos em uma vala comum ali mesmo em Tenerife. Para piorar, não haviam caixões suficientes na ilha e foi preciso importar ataúdes da Grã-Bretanha para tanto.

As complicações continuavam: A autoridade espanhola confisca as joias dos mortos e exige a retirada dos corpos em 48 horas. Com métodos pouco eficientes para identificação, o trabalho vira uma corrida contra o tempo (Reprodução)

O choque da notícia pelo mundo foi impressionante. Falou-se até em tão espantoso quanto os desastres com o Titanic, em 1912, ou o dirigível Hindenburg, em 1937. No entanto, o que mais espanta até hoje foi a sucessão de fatores que levaram a tragédia horrenda em Tenerife. Sem querer exagerar o adjetivo, a conjunção destes fatores foi perfeita, uma espécie de efeito cascata que, com um único elemento, foi capaz de ocasionar o desastre. Da bomba no Aeroporto de Las Palmas, passando pelo comandante Van Zanten apressado, a conversão errada do Boeing da Pan Am e as falhas de comunicação, combinando com o estouro do tanque cheio do jumbo da KLM.

É notável, claro, que a evolução tecnológica permitiu a diminuição de tragédias, mas não sua extinção, muito menos a nulidade nos casos de incursão (choque de duas aeronaves) pelo mundo. Outras incursões como a de Tenerife aconteceram, na maioria envolvendo aviões comerciais e aparelhos particulares, algumas tendo grande repercussão e outras tratadas como simples (porém sérios) acidentes aéreos. No entanto, é só apenas uma causa diante de um universo todo que conspira na natureza de uma catástrofe aérea.


As consequências e o modus operandi do acidente, até hoje, são motivo de estudo e de preparação de futuros pilotos para evitar que tragédias como esta jamais se repitam. Tanto em Tenerife quanto na Holanda (Westgaard) e nos EUA (Westminster, Califórnia) existem memoriais que lembram os mortos de uma tragédia difícil de esquecer, seja ela pela prevenção ou pela magnitude. Memoriais estes que, neste ano, estarão sendo muito visitados e serão motivo de notícia e reportagens especiais em memória dos que, há 40 anos, foram vitimas do maior desastre aéreo da história da aviação.

1 comentário em “Tenerife: Recordando a maior tragédia da história da aviação”

  1. ANDRÉ
    Lamentável todos estes fatos aqui relatados por você com muita propriedade e pesquisa.
    Agente sabe que não serão os últimos, porém bom relembrar pra tentar evitar. Porém sabemos que os fatores conforme você descreve são os mais variados.
    Outra coisa importante mesmo vendo esses dados dramáticos, morrem muito mais em acidentes e guerras dos números descritos por você.
    Tenho “ironizado” que a aviação é o meio de transporte mais seguro que existe, se é que pode; “todo avião que sobe, desce”.
    Parabéns por sempre nos trazer belas postagens para nossa reflexão.
    Adalberto Day cientista social e pesquisador na história em Blumenau.

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