Esse “Moleque Travesso”…

Um domingo pós-almoço numa casa típica de São Paulo, nas esquinas de São Caetano, uma das clássicas cidades do ABCD paulista. Depois de um sábado em que o plano das Mil Milhas ficou no limbo das filas no entorno de Interlagos, eu e Milton Rubinho ficamos na mão sobre o que fazer num dia tão longo.

A ideia, quase que ainda vazia de roteiro, era uma volta por alguns cantos paulistanos, sem ainda saber para onde iriamos. Nossa cabeça girava pensando mesmo com a doída sensação de fracasso, o estar “tão perto e tão longe” da grande festa do automobilismo depois de aguardar um ano para o que seria um grande encontro de amigos nas arquibancadas da casa de Bird Clemente.

E numa destas vacâncias da mente, foi só o glorioso Toninho, de jeito tímido e tão simples, aparecer na cozinha de camisa grená que os olhos do capivara brilharam na hora com uma ideia saudosa: “Boina! Vamos para a Javari! Você vai conhecer a casa do Juventus!” E preciso dizer que não comecei a cantar o hino do clube ao mesmo tempo?

A cada esquina virada, parecia algo estranho no ar. Clima de ansiedade, um certo sentimento de conquista que corria o coração de um blumenauense com apreço ao enorme livro de história que é São Paulo nos áureos tempos que a terra da garoa era a “locomotiva do Brasil”, a cidade que mais cresce e que, em domingos como aquele de sol intenso, tirava-se o tempo para se divertir antes da derradeira noite depressiva que antecipava a segunda-feira de trabalho.

Impossível não sentir aquela ambientação que já imaginava na mente por anos, desde a tenra idade: bares abertos, com o dono de jaleco azul claro, mil bebidas nas paredes, bolinho de carne na estufa e alguns gatos-pingados olhando atentos uma TV de olho nas proezas de alviverdes, alvinegros, mosqueteiros e tricolores.

Mas o caminho até a Javari inspirava outra coisa. Ali não tinha essa coisa cosmopolita e elitista do futebol atual, era como se desabássemos na roda do tempo até um distante mil novecentos e tantos, entre esquinas lotadas, bandeiras grená e o cheiro de canoli no ar.

As famílias, ansiosas e com adrenalina correndo nas veias, chegavam ávidas ao estádio. O esquadrão, no vestiário acanhado e apinhado, contava trovas da noitada passada enquanto calçava meiões, calções e envergava camisas, amarrava apertada e apressadamente as chuteiras para o derby da tarde. A tribuna social parecia misturada com os gritos do Setor 2 e de toda uma maré que pedia, na base da pura bufa, seu selecionado em campo.

Milton ia virando as esquinas, naquela orientação engessada do GPS frio. A mente estava pintada de preto-e-branco e só via traços grenás a frente. Não estávamos em 2024, num janeiro quente e vazio naquela reta da Mooca, era possível perceber algo muito diferente naquele canto escondido paulistano que fazia entender o porquê daquela gleba de terra ser tão única e especial: não era o futebol que nos obrigaram a acostumar, era o que mais humano ainda havia no esporte, o autêntico e decantado esporte bretão na raiz.

A rua vazia parecia lotada quando paramos em frente a casa: Conde Rodolfo Crespi, um nome que emanava muito mais do que algodão, mas tardes e tardes de bola rolando. O silêncio solene era trocado por expressões de empolgação e contemplação: eu vim de longe, já ouvindo falar aos borbotões dos feitos abusados de um certo Moleque Travesso que negava veementemente o futuro em nome do prazer insubstituível do passado.

Estar ali era o recorte mais fundo que podíamos sentir da história do rico futebol paulista, mesmo que riqueza ali não significasse nada. As alamedas que levam a desejada sauna, piscinas e salões de bailes inesquecíveis não tem o mesmo sentimento humano que estes miniclubes fechados de condomínios frios de pulsar humano. Dinheiro pode até ser problema, mas também não é solução quando se olha para aquela quadra histórica com essa fome de progresso simplista e criador de separações entre ricos e pobres, coisa que aquelas arquibancadas combalidas e marcadas pelo tempo nunca viram.

Aquele quadrado de terra é a menina dos olhos de qualquer especulador imobiliário, mas esta moça grená, sedutora e raçuda quando gritava com a trupe no campo, tem segurando sua mão uma torcida legitimamente louca, que sonha até com Tóquio nos devaneios mais loucos, mas que celebra até mesmo a pintura de um Rei em uma tarde inspirada cujo privilégio sobrou apenas para testemunhos oculares e não para câmeras de oito milímetros.

Eu e o “seu” Toninho. Uma camisa grená e a melhor ideia de um domingo, mesmo com o estádio fechado

Foi uma parada curta, portas fechadas fazendo repousar a casa grená diante do sambão que havia em sua frente. Fomos indo embora dali com aquela sensação de que “poderia ter tido mais”, mas para um dia vazio, o moleque travesso conseguiu, outra vez, aprontar um bom momento para um saudoso historiador vindo da capital da cerveja para absorver o clima único das esquinas de canoli e bola na rede.

E onde foi parar esse futebol? Estes engravatados e midiáticos de nossos dias jamais vão saber, jamais se baixariam a esta “volta no tempo”, imersos em sorrisos gaiatos e pervertidos, as vezes justificando com pouca bola o vazio deste esporte bretão tão perdido na riqueza que se enfiou. Aquela simplicidade, a bufa da pressão, o ambiente que fez nascer as mais poéticas crônicas esportivas de outrora, nada mais existe nos gramados sintéticos desta pátria de chuteiras sem fome de gols.

Mas ali, naquela reta, na Rua Javari, a torcida ainda pode gritar gol cara a cara dos ídolos, cuspindo farelos de canoli no palavrão voltado a mãe do juiz ou na bronca ao técnico, bem ao pé do ouvido. Permite-se deixar levar, entre berros e cânticos, a tempos áureos de diversão dominical vespertina familiar, tão obrigatória e necessária do que pisar na igreja para a missa durante a manhã após o café com leite. E que ficava melhor quando saia-se de lá com a alegria da vitória que durava até a semana seguinte, quando tudo se repetia em conversas e bolas chutadas em campinhos ou no meio de ruas saudosamente calmas.

Este é o futebol antigo, raiz, este que morre aos pouquinhos por ai. Mas, no que depender da Rua Javari, ele não morre nem em 100 anos, estes e outros mais. E no fim, o que é bom sempre fica, esse Moleque Travesso, que tem nome e tradição, que merece nosso respeito e será, mesmo tão clássico, a “força jovem da nação’.

Avanti, Juventus! (Um dia eu volto pra comer canoli!)

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