Imagine você: 1969, você está a frente de um trabalho de abertura de uma emissora de televisão na sua cidade. Você tem uma reunião marcada com a TV Tupi, a pioneira, a primeira do país e que estava buscando parceiros para montar seu esquema de transmissão em rede.
Nessas andanças, você sentado na sua poltrona, entre um gole de água e outro, encontra um amigo de longa data que trabalha numa ainda incipiente emissora de TV nascida de um grande jornal carioca. Dão umas risadas, perguntam da vida, falam até de futebol, até que o cara pergunta o que você está indo fazer no Rio.
Você, dentro do seu programa de trabalho, elegantemente diz que está com horário marcado para uma reunião com a turma dos Chateaubriand, mas deixa o nome do hotel onde ficaria hospedado. Não dá nem um momento de você ter chegado e já pensando no dia seguinte, este cidadão lhe liga da recepção do hotel para o seu quadro: “estou aqui com Walter Clark, queremos conversar contigo sobre nossa ideia”.
No tal dia seguinte, reunião as 10h na sede da emissora dos Marinho. Clark lhe convence com um sorriso no rosto e, em vez de ir até a Urca, você volta para Blumenau com a minuta de entendimento entre a sua emissora e a ainda “em desenvolvimento” TV Globo. O responsável por desviar o caminho de nossa persona chamava-se Célio Pereira, diretor de expansão da emissora e um dos braços-direitos do homem que, segundo os compêndios, criou o chamado “padrão Globo de qualidade”.
E a persona? Ela nos deixou na última sexta-feira (24) aos 80 anos de idade e recheado de história: Flávio Coelho, o “último dos moicanos” dentre os cabeças responsáveis a frente da criação da TV Coligadas, a primeira de SC, em 1969. E essa história ai em cima foi o tipo de conto que ele nos deixou para mim e a imbatível Soila Freese durante a produção do documentário “TV Coligadas: A Aventura do Canal 3”, lá por 2017.
Coelho era aquele cidadão que você praticamente “pedia a benção” para falar da Coligadas. Dentre tantas fontes que tinhamos no nosso plano, ele era uma peça vital, importantíssima para ligar elementos da história que, ainda hoje, faltam para ser recontada. Do lado dele, apenas os três malucos que pensaram em responder a pergunta do “por que não montar uma emissora de TV em Blumenau?”: Caetano Deeke, Luiz de Freitas Melro e o xará Flávio Rosa.
Vividamente recordo do dia que ele viera aos estúdios da Cuka Filmes, ali na região da Paulo Zimmermann. Coelho veio com pompa, elegantemente vestido, tinha saído de um pequeno problema de saúde e estava pronto pra botar o que viveu em nossos cartões de memória. E mano, que tarde deliciosamente vivida entre memórias e curiosidades.
Alias, essa vontade de remontar a história da TV Coligadas talvez tenha sido (até agora, claro) a maior explosão de curiosidade que já tive na vida. Tanto ouvia falar dela pelo ar que, bastou as linhas do livro do Zair Anibal de Souza, o Zico, para que todas as perguntas mais subissem no telhado. E os únicos que podiam contar isto eram seus realizadores: os que meteram a mão na massa e os que a viram crescer de onde estavam.
Flávio era um deles, e confesso que não vou lembrar de cabeça se foi eu ou a Soila que conseguimos chegar nele, a memória me trai. Mas o que eu e ela ouvimos naquela tarde foi preciosíssimo. O cidadão em nossa frente estava com as peças do tabuleiro do negócio, entre os que mexiam as varetas para que a Coligadas acontecesse de fato. Não fosse ele ou qualquer um dos que seguiram estes caminhos e a TV Cultura, de Florianópolis, seria a pioneira, um ano depois.
O que ele nos contou arrepiaria a geração atual, acostumada aos botões e softwares e desconhecida dos modo braçal de fazer TV: como os capítulos de novelas chegavam na emissora? Como eram produzidos os comerciais se nem agência ainda tínhamos? E a programação? Os nomes que fizeram a hora?
Eram nuances da propalada “integração” que o Canal 3, a menina dos olhos de Beto Fausel, eram capazes de fazer numa SC distante, agrária, ainda pequena no sul e até mesmo a cor da unidade móvel, a qual ele respondeu de boca cheia para meu espanto: “verde Brasil!”
E como disse, até hoje são poucos os elementos que servem para preservar a memória da Coligadas. Este documentário é pouco, muito pouco, falta bem mais. No entanto, deixar-se ir um pioneiro pela falta de seu depoimento – ou negar-se a dá-lo, como aconteceu com Valmira Siemann – é um crime contra a história de um povo, dos seus costumes e processos.
Talvez, olhando para trás, possa perceber que o pouco que escutamos de Coelho seja uma parcela da sua vida, mas uma fração enorme da sua participação num dos momentos mais importantes da história blumenauense: aquela feita de bons malucos que ousaram subir o Morro do Cachorro e colocar em pratica a ferramenta de integração que tanto queriam: a televisão.
Gratidão, Flávio! Jamais vou esquecer a cor da unidade móvel da emissora. Prometo!