Thomas & Seus Amigos: você deve ter ouvido falar deste programa infantil. As fábulas do famoso trenzinho azul e seus colegas de trabalho inspiradas pela imaginação e obra do reverendo Wilbert Awdry, que concebeu a série de contos para entreter o filho, Christopher, durante uma epidemia de sarampo no Reino Unido, na década de 1940.
Elas se passam na fictícia Ilha de Sodor, um punhado de terra entre a Inglaterra e a Ilha de Man, permeada por belas paisagens e um sem-número de trens a vapor, incluindo o pequeno Thomas, a locomotiva numero 1, que passa dias e dias aprendendo lições, vivendo grandes aventuras e se metendo em enrascadas ora perigosas, ora evitáveis.
A história de uma cidade, no entanto, jamais pode ser colocada como uma fábula hipotética e sem pé e nem cabeça. Em se falando de Blumenau, já vivemos momentos dolorosos no que diz respeito a nossa memória, os documentos e elementos de pedra e aço que recontam passagens e fazem a cada um conhecer melhor o íntimo do passado municipal e preparar o pensamento para o futuro.
É inevitável: quem pensa na inutilidade de falar de história está sempre fadado a repetir os mesmos erros e acefalias, coisa de quem pode ouvir este discurso e achar inútil ao mesmo tempo que aplaude preconceitos, violências, destruições e, neste caso, desfigurações do patrimônio de todos.
Mas explique isto a quem cuida de nossa memória sem fazer dela um autêntico palanque de autopromoção e motivador de cliques e curtidas. Aos que prezam o respeito a já tão vilipendiada história blumenauense – entre incêndios, enchentes e ignorâncias – é de se ter raiva ao ver desfigurada e pateticamente “reformada” a Macuca, primeira locomotiva a rodar pelos trilhos da assassinada Estrada de Ferro Santa Catarina (EFSC), em 1909.
Rapidamente: seu apelido veio do simpático pássaro Macuco, graças ao apito e a semelhança com o pássaro (dizem os antigos). Ela chegou por estas bandas a bordo do vapor alemão Klobenz e sua primeira grande empreitada foi servir de transporte eficiente de material para a construção do primeiro ramal da EFSC: de Blumenau à região do Warnow, em Indaial.
A valente Macuca serviu até os últimos tempos da estrada de ferro, quando sua desativação chegou irremediavelmente em 1971. Entre choros e lamentos, a malha ferroviária foi sendo removida de nossa economia e memória, e a máquina a vapor foi largada em um canto, milagrosamente escapando da chacina perpetrada na frota de locomotivas, escapando-se uma ou outra.
Do abandono, ela encontrou um novo lar: a fachada da nova prefeitura, em 1982. E demorou tempo para ela ir para este canto, rolando de um lado para outro até chegar lá. Mas a tão ansiada preservação histórica nunca foi o forte da cidade, sinceramente falando. O tempo – bem como o desrespeito de alguns transeuntes – encarregou de deixar suas marcas, muitas vezes maquiadas por demãos de tinta colocadas a esmo.
Quando esse cosmopolitismo da modernidade e sofisticação de elite veio chegando em Blumenau, chegou também a vez da Macuca entrar no passo. Prometida como atração da nova praça ao lado da prefeitura, recebendo o sugestivo nome de “Estação” (aqui ninguém está sendo pago para mostrar marca). A velha máquina foi prometida para uma restauração. Mas que restauração?
Pouco se soube ou se acompanhou dela. E na revelação, o choque: características dela própria foram apagadas e até mudadas de lugar (como as janelas). A aparência de máquina forte foi trocada por uma chapa artificial ao extremo, detalhes construídos toscamente e a colocação de um infame limpa-trilhos (locomotiva alemã, a Macuca nunca o teve) na sua dianteira.
Fala-se em “detalhamento” e afins, mas o resultado dói os olhos. A reação de reprovação foi instantânea, mesmo que muito dela motivada pelos responsáveis pela “obra” (que aqui, prefiro não citar). Aqui, falo da contínua ignorância de elementos da cidade com relação ao autêntico cuidado histórico, ao consulte de registros (ainda que poucos) para se ater aos verdadeiros detalhes, ao respeito a já tão maltratada história de nosso passado ferroviário.
Blumenau em Cadernos, o próprio arquivo de imagens (na biblioteca e na própria internet), até os valentes representantes da Associação Brasileira de Preservação das Ferrovias (ABPF) – que mantém viva e dignamente a memória da EFSC em Apiuna – quantos foram consultados? O toque de caixa é a lei para se colocar mais uma cereja em um espaço elitizado? É lamentável…
E mesmo que pise naquele lugar para conhecer a “obra”, que me desculpem os que dizem que este escriba exagera, mas não me surpreenderia. Já perdemos tanto com enchentes e incêndios, mas a mão do blumenauense tem se superado ao derrubar, assinar, rabiscar, demolir e “recuperar” seu passado de uma forma assustadora e preocupante.
A Macuca não me surpreende. Na sua saída de seu repouso, já pensava comigo que não veria como nos dias mais dignos de sua existência. Virou um artefato fake, um elemento para caracterizar uma estação, e não para recordar de tempos românticos dos trens no Vale.
E isso vai gerar cliques, curtidas e recortes “instagramáveis”, sobretudo para uma elite que esquece do passado ou faz dele um caçador de popularidade. Enquanto a massa aplaude e censura as reclamações, a nossa memória segue assim: soldada, rebitada e pintada de qualquer jeito, apenas para parecer “história”.
E para terminar, ainda emanando essa fábula inglesa que me inspira a falar da tragédia cômica, apenas digo: Thomas não gostava de limpa-trilhos.