Cravos e poderes

Você reconhece o poder de uma flor?

A flor que, cálida, nasce encharcada pelo orvalho e cresce radiada pelo sol, para alegrar mais um dia dos parcos cristãos nesta terra que ainda apreciam a beleza de uma flor.

A flor, na mão dos apaixonados, é a arma que rasga sorrisos dos lábios de quem se ama, sejam eles certos ou de esperança de que um amor não se acabou na última briga da noite passada.

Flores que reverenciam os partidos, que acompanham as noivas no caminho do altar. Flores, em buquês, sozinhas, vivas ou em essência. A flor em todas as suas formas, sempre se fazendo lembrar da sua anterior forma de flor.

E a flor que muda um país todo? Uma flor apenas, um gesto simples e tão direto que vira uma epidemia de vozes e cores pedindo que o preto-e-branco da autocracia suma de suas existências, de seu país?

Pergunte a qualquer português o que significa, para ele, um cravo na ponta de um fuzil? A imagem pueril de uma criança adornando uma arma pesada com a simpática flor encarnada é o símbolo que um lusitano carrega em olhos marejados de dias de convulsão, mas também de nascimento da liberdade.

Ao voltar para casa, encerrando as portas a pedido dos soldados em curso revolucionário nas esquinas portuguesas, Celeste Caeiro tomou em mãos um dos tantos molhos de cravos que tinha dado aos funcionários do restaurante em que trabalhava há um ano.

Soldados efervesciam. Algo acontecia na sempre quieta Lisboa naquela manhã de 25 de abril. Indagando um soldado, ele avisou do caminho que tomavam: o Quartel do Carmo, para retirar de lá o salazarismo que impregnava a política portuguesa há tempos. Sem ter o que oferecer de comida ou bebida para aquele soldado, Celeste lhe estendeu os cravos em mão.

A flor, tão simples e marcante no seu tom vermelho feito rosa, se espalhou entre os colegas de fileira daquele soldado. O que era um, eram centenas, milhares, buscando e adornando-se com cravos. Todos queriam “a cabeça” de Marcello Caetano, queriam o ver sair, rendido e depauperado, junto com a ditadura, do Carmo.

A flor derrubou um governo, derrubou a autocracia, a privação de liberdade, a ignorância. É certo que o mundo não é a poesia idílica que qualquer português pudesse imaginar nos anos vindouros, mas o bom chinês sempre disse que toda caminhada começa com um primeiro passo. Uma flor é um motivador a mais.

Tantos quantos cravos que, ainda hoje, passam de mão em mão de lusitano para lusitano, do pescador ao mestre dos pastéis-de-Belém. Do fadista ao poeta, do português de Lisboa ao do Porto, dos Açores a Madeira, dos libertos aos que pedem liberdade, amor, respeito, paz.

Eu não acredito no mundo frio que prega o material e o momentâneo como a solução de tudo. Aquele que grita e agride o próximo querendo impor a sua razão é um tanto Salazar no seu processo. Estende uma flor, nem que em pensamento, e quebra essa espiral sínica e perversa, construída pelas aparências e medos da expressão e da sensibilidade.

Em algum lugar do mundo é possível ouvir alguém cantando qualquer canção além do “Grândola, Vila Morena”, clamando mais paz, menos ódio. Estes dias que vivemos pedem muito mais, ainda vivendo nós nesta rachadura em que é o Brasil.

A lição vem dos portugueses, entre suas reflexões poéticas, cravos e memórias de um 25 de abril. O que é o poder de uma simples flor?

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