Som n’A BOINA #30: Soeur Sourire, seus dramas e uma melodia imortal

Os anos 60, sem sombra de dúvida, foram a verdadeira salada na história da música, isto sem nenhum exagero. O amadurecimento do Rock, a chegada de intérpretes de várias partes do mundo e a chamada British Invasion (Invasão Britânica) proporcionaram uma avalanche cultural, musical e de várias pegadas e estilos que marcaram a influência a vários cantores e bandas até os dias atuais.

Fora os Beatles, que fincaram a bandeira britânica definitivamente no cenário musical internacional, intérpretes franceses, italianos e até japoneses – como foi o caso de Kyu Sakamoto com Sukiyaki, em 1963 – marcavam presença nas famosas listas de Top 100 da Billboard, o verdadeiro termômetro musical até os dias atuais. No entanto, no mesmo 1963, eis que uma canção simples executada em violão por uma freira belga e mais três colegas de convento como backing vocals deu rasteira no fab four e até no Rei do Rock, Elvis Presley, tomando o primeiro lugar das paradas americanas.

Chocante? Era o retrato da música dos anos 60, onde Jeanine Deckers, ou Soeur Sourire (Irmã Sorriso) acabou mergulhando com a singela Dominique. Melodia imortal que conquistou o mundo, mas não fez rica a dona da canção, numa história mista de alegria e tragédia.

Jeanine, a freira que canta

Nascida em 1933, Jeanine era uma típica freira dominicana no convento de Fichermont, em Waterloo, onde era congregada desde 1959. Lá, as irmãs cuidavam das plantações de vegetais e das árvores, devotando-se a oração como o padrão de qualquer convento. Cantar era apenas um dos tão poucos momentos de descontração das freiras nos dias de trabalho e orações, e foi numa destas diversões sem pretensões que Jeanine foi descoberta, cantando melodias com colegas de convento e sempre esboçando um alegre sorriso.

Habilmente tocando um violão sem nenhum recurso modernoso e tomando como nome artístico a sua marca mais latente – o sorriso – Soeur Sourire virou celebridade da noite para o dia, e Dominique, a musica mais popular entre as freiras, tornou-se um hit internacional, cruzando as fronteiras da provinciana Bélgica para o mundo. Não menos estranho, as versões de Dominique se multiplicaram em várias línguas e o Brasil não ficou de fora, sendo gravada em duas versões diferentes, a primeira pelo Trio Esperança, em 1964, e a segunda – e mais popular – na voz de Giane, em 1965.

Debbie Reynolds em cena do filme Dominique (The Singing Nun), de 1966. A canção virou febre mundial, interpretada em várias línguas e versões, virando até filme, como este (Reprodução)

A tradução original da canção fala de uma missionária que viaja o mundo levando os ensinamentos de Deus, puramente uma canção religiosa, como não poderia ser diferente. A dimensão que a música tomou pelo mundo foi tamanha que até filme virou. Dominique (The Singing Nun), foi lançado em 1966, tendo Debbie Reynolds no papel de Irmã Ann, que claramente era uma personificação de Soeur Sourire para as telonas. O filme fez um relativo sucesso onde foi exibido.

A vida não imita a arte

Jeanine nos últimos dias de vida. Perseguida pelo fisco belga, sem o dinheiro das composições musicais – tomado pelo convento por conta do voto de pobreza da cantora – mas feliz junto da companheira com quem vivia desde 1965 (Reprodução)

Apesar do sucesso cada vez maior, a nova vida de Jeanine não acompanha a vocação que tinha, muito menos a forma como a fama era lidada pela freira. Em 1966, após divergências com seus superiores, Jeanine deixou o convento e foi morar com a enfermeira Annie Pécher, com quem já vivia um caso naqueles idos. O nome de Soeur Sourire como intérprete ainda tinha um certo respeito mas o retorno monetário não era condizente com o tamanho do sucesso de Dominique, e por uma explicação simples: Segundo a agora ex-freira, como mantinha o voto de pobreza naquele período, todos os ganhos com a canção acabaram parando diretamente para o convento onde ela estava, deixando-a irremediavelmente endividada.

Jeanine (sentada) e Annie Pécher. A depressão e o pacto de morte levaram ao suicídio de ambas em abril de 1985 (Reprodução)

Jeanine entrou com um processo contra o convento dominicano, que alegou não ter nenhum recibo provando as doações. O fisco da Bélgica apertou o cerco e recolhia dela todo ganho que chegasse as mãos para o pagamento das dívidas, permitindo apenas que ela ficasse com o mínimo para sobrevivência. Revoltada, a outrora Irmã Sorriso abandonou o nome artístico, revelou ser lésbica e tentou reaver seu sucesso com o nome verdadeiro e uma canção polêmica – La pilule D’or – falando sobre o controle de natalidade. Ai, até o próprio governo belga não admitiu a revolução de Jeanine, que foi ainda mais perseguida pelos impostos não pagos por esta nova canção.

Foram décadas pesadas e quase reclusas para Jeanine e Annie, que passaram os anos 70 lutando contra o fisco, os preconceitos latentes e o ostracismo necessário para se ter um pouco de paz na vida. Quando o fisco aliviou o peso sob os ombros, Jeanine tentou voltar a evidência em 1982 com uma versão modernizada de Dominique, com batida eletrônica e sintetizadores. Foi um fracasso. Três anos depois, deprimida e sem rumo, ela e a companheira cometeriam suicido ingerindo uma mistura de álcool e barbitúricos. Era 1º de abril de 1985 quando a Irmã Sorriso se calava para sempre.

Jeanine não teve uma vida tão feliz e sorridente depois da fama. No entanto, isto não quer dizer que uma simpática freira não possa fazer algo mais do que seguir a vocação no convento. Nos últimos anos, dois bons exemplos deram as caras pelo cenário mundial da TV e, claro, na música. Um belo exemplo foi em 2014, quando uma freira venceu a versão italiana do programa The Voice. Tratava-se de Cristina Scuccia, que surpreendeu o mundo cantando hits pop com muita desenvoltura, especialmente a clássica Like a Virgin, de Madonna, sua artista preferida.

Irmã Cristina Scuccia, uma revelação italiana da música sob o traje de freira. Vencedora do The Voice italiano, com uma bela voz e realizando sonhos: Gravar um disco e cantar a canção da intérprete favorita: Like a Virgin, de Madonna. Outros tempos (Reprodução / Globo)

Quanto a dramática história de Jeanine Deckers, ela foi retratada em filme em 2009, contando em detalhes os lances de tensão e drama que levaram a sorridente freira belga a ruína pouco a pouco. A autora foi-se, mas a obra máxima permanece até hoje permeando a mente dos mais experientes como uma doce lembrança de um passado de boa música, alegrias e uma revolução musical que permitiu a uma freira se tornar um fenômeno de sucesso e uma número um na complicada lista da Billboard.

Outros tempos. Mas… Quem disse que eles não podem se repetir?

1 comentário em “Som n’A BOINA #30: Soeur Sourire, seus dramas e uma melodia imortal”

  1. Assisti um filme Europeu sobre a “freira que canta”. Ela apoiava John Lennon. O proprio disse antes do lançamento de Sargent Pepper’s : “Somos mais populares que Jesus Cristo” e que “Seus Apostolos eram todos ignorantes”!!! O inferno é lugar pra Padre ou melhor pra Freira!! – marcio “osbourne”silva de almeida/jlle-sc

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