Zé Carioca: A trajetória do mais brasileiro dos personagens de Walt Disney

Sr. José Carioca. Brasileiro, papagaio, vacinado. Escapou do quartel e tem aversão ao trabalho. Mora num casebre modesto na ainda mais modesta Vila Xurupita, um dos tantos morros do Rio de Janeiro. Morre de amores pela filha de um magnata e busca seu coração mesmo que seu pai a queira bem longe dele. É boleiro no fim de semana, não sendo exatamente o craque do time. Junto de Nestor e Pedrão – e mais alguns bons adoráveis desocupados da vila – se mete em encrencas das maiores, escapando principalmente dos calejados funcionários públicos da ANACOZECA (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca).

Se você já o conhecia, talvez era um mais do mesmo ou uma doce recordação da infância regada a gibis da Editora Abril. Mas se você não sabia da existência deste bom sujeito, saiba que a história dele é tão importante quanto se qualquer outro personagem de Walt Disney mais cotado ou qualquer outra identificação brasileira no exterior. Ele nasceu das mãos do próprio Walt, e de um elemento apenas na política de relações entre Brasil e EUA nos tempos de guerra nasceu uma espécie de ícone da brasilidade de outros tempos, sempre jovem mesmo passado já dos impressionantes 75 anos da sua primeira aparição.

O nascimento: Partindo de um quarto de hotel

Donald em Der Fuehrer’s Face, de 1943. Nos tempos da guerra, até mesmo as animações serviam para disseminar ideias e tentar combater a ideologia do eixo em outros países. (Reprodução)

Era 1941. O mundo vivia sobre o calor da Segunda Guerra e Hitler estava, literalmente, com a Europa nas mãos, partindo com tudo para cima da URSS em busca de ampliar o chamado espaço vital. Na Asia, os japoneses preparavam os últimos retoques para o ataque aos EUA pela base de Pearl Harbor, isto depois de terem dominado posições no Pacífico e países vizinhos. Não tinha um ser humano que não podia ficar alheio aos perigos do conflito, que parecia mais perto ainda da porta de cada um.

Neste clima de tensão, os EUA sabiam que contar com os aliados era uma forma irrestrita de defesa e força para encarar o possível inimigo. No entanto, abaixo do Equador era possível se esperar de tudo com as ditaduras populistas de Brasil (Getúlio Vargas) e Argentina (Juan Domingo Perón), cada vez mais simpáticas as ideias dos países do eixo. Talvez não pela carnificina, mas muito mais pela oportunidade furada de negócios. Coisas que faziam o presidente Franklin Roosevelt não dormir sossegado na Casa Branca.

Temeroso com a aproximação do eixo na América do Sul, cujas relações com Washington estavam deterioradas deste o tempo do Big Stick de Theodore Roosevelt, Franklin lançou naqueles idos uma série de iniciativas culturais e sociais, mesmo discretas, de aproximação e inserção do chamado american way of life no cotidiano latino-americano, sobretudo no Brasil.

Walt Disney nas areias do Rio de Janeiro, em 1941. Visita do desenhista foi parte de uma comitiva em busca de desenvolver a política de boa vizinhança dos EUA com o Brasil através da sétima arte: Zé Carioca seria uma espécie de produto disto, além de uma homenagem ao país que lhe acolhera Reprodução)

Neste contexto de aproximação com o vizinho do sul, a indústria cinematográfica de Hollywood teve um papel dos mais destacados, tão destacado quanto a política econômica entre os países latinos e os EUA. Era através dela que a imagem colorida e vibrante da América Latina ganhava luz, substituindo a visão de vilões vindos do continente ou até limando costumes norte-americanos malvistos, como a protuberante discriminação racial daqueles tempos.

Foi neste turbilhão cultural movido pela latinidade que entrou a figura de Walt Disney. Em 1941, ele ainda colhia os louros de Branca de Neve e os Sete Anões e continuava inovando dentro dos filmes que produzia, como Fantasia, o inesquecível longa do Mickey feiticeiro lançado naquele mesmo ano. Disney viria ao Brasil como um dos integrantes da comitiva que fomentava a política de boa vizinha no campo das artes. Era um dos três destinos do grupo. Além do Brasil, a comitiva visitaria Argentina e Peru.

Primeira página de Como Almoçar de Graça, a primeira tira de Zé Carioca, em 1942 (Reprodução)

Walt Disney não escondeu no semblante que gostou do Brasil, prometendo criar algo que representasse o país no cast seleto dos estúdios. A base do que seria o personagem nasceu de um modelo criado pelo chargista carioca J. Carlos, a qual Disney havia impressionado-se com o trabalho do desenhista e até convidado-o para trabalhar junto dos profissionais dos Estúdios em Hollywood. J. Carlos recusou o convite mas deixou para Disney o primeiro esboço do papagaio. E não poderia ser outro a faze-lo, afinal, J. Carlos foi o primeiro brasileiro a desenhar o Mickey Mouse, o desenhando para capas e peças publicitárias na revista O Tico Tico.

Foi um tiro certeiro, aproveitando-se da popularidade das piadas de papagaio e das cores nacionais presentes nas penas da ave, Walt Disney deu vida a Joe Carioca, o Zé Carioca para nós. Um cidadão trigueiro, sempre alegre, trajado nos primeiros anos de paletó, gravata-borboleta, tendo na cabeça uma palheta e nas mãos um guarda-chuva, para se proteger das eventuais chuvas de verão brasileiras. Sua primeira aparição se deu no ano seguinte, 1942, nas tiras clássicas da Silly Symphonies, intitulada Como Almoçar de Graça.

O cinema apresenta Zé

No cinema, a primeira aparição de Zé Carioca se deu no longa Saludos Amigos (Alô Amigos), de 1943. A película é uma verdadeira ode animada a vários pontos da América do Sul, destacando-se as passagens pelo Lago Titicaca, os pampas argentinos e, por fim, o jovem Zé apresentando a Donald o samba e as cores do país em Aquarela do Brasil. O trecho musical é uma pérola, com a apoteótica música de Ary Barroso e a dublagem do papagaio a cargo de José de Oliveira, o Zezinho, famoso cavaquista paulista.

Veja o trecho completo em português em duas partes:

O sucesso da animação foi tamanho que Disney resolveu investir em mais um longa de animação. Dois anos depois, em 1944, era lançado The Three Caballeros (Você Ja Foi a Bahia?), onde Donald, mais uma vez, era levado a conhecer os detalhes da América Latina, viajando pelo Brasil com Zé mais uma vez, e agora com uma parada no México, sendo acompanhados pelo aloprado galinho Panchito em um passeio cheio de gritos e mariachis. Nota neste filme a presença da irmãzinha caçula de Carmen, Aurora Miranda, na interpretação de Os Quindins de Yayá, outra pérola musical de Ary Barroso.

Outra animação que merece destaque com Zé Carioca foi Blame It on Samba (A Culpa é do Samba), parte do filme Melody Time (Tempo de Melodia), de 1948. Também completa abaixo:

Donald, Panchito e Zé. Em Você Já Foi a Bahia? a afirmação como personagem-representante do Brasil, além do sucesso do filme (Reprodução)

Nos quadrinhos: A consolidação da identidade brasileira

O nº1… ou melhor, nº479. Zé estreou nos quadrinhos brasileiros pela mão de Luis Destruet nas páginas d’O Pato Donald. Jorge Kato seria o primeiro brasileiro a desenhar e criar histórias com o papagaio. Detalhe: Zé Carioca nunca teve uma revista nº1, sendo esta considerada a primeira edição (Reprodução)

Os anos seguiram, e logo Zé Carioca fez sua chegada oficial aos quadrinhos, no número um d’O Pato Donald, em 1950, pelas mãos do argentino Luis Destruet. Era apenas a capa da edição, já que uma história oficial mesmo só seria lançada um ano depois, também n’O Pato Donald. Com o grande Jorge Kato assumindo os desenhos nos anos 60, Zé enfim era produzido por um profissional brasileiro, tendo o numero um de seu gibi próprio lançado em 1961.

No entanto, o Zé Carioca conhecido até os anos 70 era o mesmo que conquistara os EUA na década de 40. Além do mais, ele ainda era uma presença quase certa no universo de personagens como Mickey e Donald, numa confusão de identidades. A Abril não queria cancelar a publicação, mas também não podia continuar com as adaptações complicadas das histórias originais de Walt Disney para o universo do papagaio, coisa que os leitores assíduos já não toleravam muito.

Coube a Renato Canini, experiente desenhista com passagem pelo Pasquim, uma espécie de renovação no personagem, ganhando um universo próprio, recriando a identidade dos personagens e inserindo novos, como os primos do Zé que homenageiam alguns estados do país. O papagaio passava a viver seu auge e o momento mais importante para sua existência, o que serviria para crava-lo como personagem popular entre os populares nos quadrinhos brasileiros. Ele seria demitido pela Disney em 1979, mas seu serviço em prol de Zé e seus amigos seria mais que reconhecido com o tempo.

Outros revezes viriam, especialmente nos anos 80 e 90, quando a falta de um desenhista para dar continuidade limitou o trabalho sobre o personagem por alguns momentos. Mas Zé se manteve firme no cenário das HQs, sobretudo em edições especiais recheadas de grandes momentos e histórias muito bem boladas. Chegando aos dias de hoje, o papagaio está mais brasileiro do que nunca, trajado bem ao estilo do carioca simples e apreciador das coisas boas da vida, a exceção – e sempre – do trabalho. Ele ainda está em catálogo, sempre em histórias renovadas e atuais, e pelo andar da carruagem, dificilmente ele deixará nosso convívio tão cedo.

Renato Canini, considerado o pai do Zé Carioca por ter revolucionado o personagem, lhe dando brasilidade (Reprodução)

Por dentro da Vila Xurupita

Zé pelos Arcos da Lapa. O bom carioca vive o dia na folga, escapando do trabalho e sempre metido em bicos e mistérios, especialmente no seu canto de terra: A simpática Vila Xurupita (Reprodução)

Basicamente, a morada de Zé Carioca é como qualquer uma no gigante Rio de Janeiro. A Vila Xurupita, lugar ordeiro onde, vez em quando, rola um rebuceteio, é um cantinho alegre ao seu jeito. Tem time de futebol e até escola de samba, e tem também o malandro Zé Carioca, que praticamente mantém a comunidade pelos próprios dedos e penas. Ao seu lado, o inseparável Nestor, um urubu que mesmo no papel de fiel escudeiro sempre desconfia dos planos furados de Zé para ganhar vinténs ou alguma popularidade. É o mais trabalhador da dupla, mas não dura muito nos empregos, sendo a maior parte de suas demissões causadas pelo bom amigo de tantas aventuras.

Zé Carioca é um brasileiro amante como qualquer outro. História de amor brasileira sempre tem um Q de diferente das do resto do mundo, e a do papagaio não podia ser diferente. Desde 1942 ele corteja a simpática Rosinha, simpática, as vezes pronta para subir as tamancas, ela que move o coração do papagaio, embora por momentos questione o estilo de vida largado do namorado e seja ciumenta de carteirinha.


Como muito brasileiro, Zé é um autêntico boleiro. Defende até a alma as cores do Vila Xurupita FC e seu glorioso uniforme rosa-e-branco. Aqui, a trupe no especial alusivo a Copa de 2014 (Reprodução)

Ela dá de ombros com as ameaças do pai, o milionário Rocha Vaz, que não quer ver Zé nem pintado de ouro a sua frente. Ao pai cheio de grana talvez lhe agradasse bem mais o estilo de Zé Galo, adversário de Zé Carioca pelo coração da moça e sobrinho de um grande amigo do magnata. Ele faz de tudo para derrubar o papagaio, até time de futebol e escola de samba já criou para rivalizar com ele. Nada feito, tanto a Vila como Rosinha só tem olhos e abraços para o simpático Zé.

O dono da melhor feijoada do pedaço é o Pedrão. Aquele parça dos grandes (e bota grande nisso) que, mesmo sendo amigão do peito, jamais deixa Zé colocar as penas nas amadas e idolatradas jacas que cultiva com carinho no quintal de casa. Quem sabe, com alguns ensinamentos a mais, os sobrinhos Zico e Zeca consigam colocar a mão nelas num puro golpe de malandragem. E a vida não podia ser mais tranquila como está sendo naquele cantinho de Rio de Janeiro.

Mas, tranquilo é um mero modo de dizer sobre o dia a dia da Vila e seus arredores. Lá acontece de tudo um pouco, dos causos urbanos mais corriqueiros aos mistérios mais cabulosos. Zé já foi detetive, já desvendou as misteriosas marcas na Pedra da Gávea, já se livrou das constantes visitas dos figurões da ANACOZECA, já enfrentou o Fluminense em pleno Maracanã, foi super-herói na pele do Morcego Verde e tudo mais. Tudo mesmo… menos trabalhar.

O estereótipo

Alias, a postura largada, adepta ao jeitinho e avessa ao trabalho é motivo de discussão por parte de especialistas do comportamento, jornalistas e outros especialistas em sociologia. Didaticamente falando, o perfil de Zé Carioca seguia o clássico estereótipo brasileiro, aquele que acabou sendo refletido nas córneas americanas nos tempos de guerra.

Trabalho: O eterno pesadelo de Zé Carioca. Em vezes, os estereótipos incorporados pelo papagaio são motivo de discussão sobre a identidade do brasileiro que é transmitida por ele (Reprodução)

Talvez por esta visão controvertida do personagem é que Zé ande um tanto na sombra no século XXI, assim como tantos outros elementos que, de fato, comprovam a forma de grande parte dos brasileiros viver a vida. E que não é mentira nenhuma, afinal, até os engravatados políticos de Brasilia parecem seguir o manual do papagaio de Walt Disney. Agressivo? Mas a pura verdade.

Controvérsias a parte, quadrinhos e quadrinhos depois, Zé Carioca tem ainda um lugar reservado bem especial na tal galeria de personagens e elementos que representam o Brasil pelo mundo. Nascido com um objetivo político, o papagaio de Walt Disney é mais brasileiro do que nunca, vivendo a vida boa e fazendo-a feliz ao lado dos amigos por várias aventuras nestes 75 anos de folia.

Se Disney queria homenagear o Brasil de alguma forma, não poderia ter acertado tão bem quando deu a vida ao mais ilustre cidadão da Vila Xurrupita, e que ainda permanece no coração e memória dos fanáticos por gibis Disney.

Vida (e folga) longa a Zé Carioca!

1 comentário em “Zé Carioca: A trajetória do mais brasileiro dos personagens de Walt Disney”

  1. Fascinado!
    Essa é a palavra, para que eu que tenho alguns Pato Donald e Zé Carioca e outros de criação de Walt Disney e que colecionava desde 1960. Para ser bem sincero Pato Donald nunca foi Pato mas sim é está mais para Marreco. Mas isso não muda nada sua importância.
    O Zé sim este é brasileiro com certeza tão bem representado por um papagaio e carioca da Gema, será?. Bela pesquisa André como sempre.
    Parabéns
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau

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