TV Coligadas: 50 anos em busca do deslumbramento perdido

Era por volta de 1900 quando uma reação em comum tomava conta das pessoas que, seja no Salão Holetz ou no Teatro Frohsinn, estavam diante de um assombro: em uma tela branca, pessoas e coisas se moviam miraculosamente como se houvesse um universo paralelo diante dos espectadores. Um misto de emoção e incredulidade com aquela que seria uma das grandes invenções de todos os tempos: o cinema.

Deslumbramento e fascínio com a imagem e a voz gravadas e transmitidas foram algumas das grandes façanhas de outros tempos. A capacidade de retratar ou transmitir eventos, fatos e histórias através de fios, filmes, fitas e ondas numa espécie de testemunha fiel de fatos reais ou fictícios. Tudo para o divertimento ou informação de um público que ainda era acostumado com livros extensos e páginas amareladas de jornais.

Ah… o deslumbre! E o que fora deslumbre em 1900 voltou a encantar quem teve contato com outra forma de “ver figuras se movendo” quase 70 anos depois. Desta vez, as figuras na tela eram ainda mais próximas dos espectadores do que nunca foram. Era a realidade do seu pedaço de terra, sua casa, sua cidade e as cidades vizinhas que, através das ondas, conheciam vizinhos e a si mesmas no contexto social de um estado, de uma cidade outra vez pioneira.

Foi neste prédio na ainda desértica Rua Getúlio Vargas que outra fase de deslumbramento com imagens começava em Blumenau. Era 1º de setembro de 1969, 50 anos atrás, quando a TV Coligadas enfim levava as primeiras imagens de Santa Catarina aos catarinenses (Arquivo Histórico)

Há 50 anos, Santa Catarina descobria o mundo da TV. Blumenau, outra vez a frente, era a responsável por mais este novo fascínio diante de tantos olhos curiosos pelas imagens que significavam bem mais do que informação e lazer, mas a primeira forma de integração e reconhecimento do catarinense como catarinense. De uma empreitada fracassada para uma fábrica de cervejas para um empreendimento que, 19 anos depois de pisar no Brasil, chegava a nossos lares: o advento da TV Coligadas.

Vera Fischer no posto de Miss Brasil. Em 1969, ainda no final do período de transmissões experimentais, Blumenau testemunhava seu primeiro evento histórico diante das câmeras de uma emissora de TV (Reprodução)

Para A BOINA, falar da TV Coligadas é muito mais do que contar uma história entre suas dificuldades, conquistas e revoluções. Em 2016, essa proeza de levar a mais gente essa trajetória foi conseguida com o documentário “TV Coligadas – A Aventura do Canal 3”, recordando em testemunho oral de seus construtores e espectadores o que foi a chegada da televisão a um estado que mal se conhecia e reconhecia. Uma saga difícil, que contou com depoimentos para ilustrar o que as poucas fotos de arquivo traziam: a sensação de ser pioneira outra vez na comunicação, e desta vez, como integradora, divulgadora de um estado e suas características.

No entanto, não estou aqui pra contar (outra vez) a história da TV Coligadas. O documentário fez isso e o livro – que estou devendo e pago esta dívida em 2020, prometo! – vai faze-lo também. Importante, acima de tudo, é refletir como a televisão provocou a verdadeira reviravolta em um estado e, naturalmente, em uma cidade que, em 1969, parecia equidistante de um mundo em constante mutação. Homem na lua, tensões da ditadura militar, musica em ebulição e o que mais vinha a telha.

A TV, por si só, representou um choque. Os trabalhos experimentais começaram ainda em 1968 e a prova disso estava nos olhos de colonos que moravam nas imediações do Morro do Cachorro, onde as imagens eram geradas. Em uma pequena sala, os técnicos que lá subiram a base de facão tinham a companhia de moradores curiosos pelas imagens que saiam da caixa luminosa. Eles viram uma cidade que se virava para o rio, cheia de verde e com uma Miss Brasil aclamada na sua volta pra casa. Eles viam Blumenau, eles se viam na tela, o estado estava se vendo pela primeira vez.

Câmeras a postos. Duas Ampex e duas Maxwell. Atrás da lente delas e de seus operadores, milhares de pessoas que mudavam seus hábitos e conheciam melhor o estado em que viviam Reprodução)

E assim veio 1969, o 1º de setembro de outros dias que vieram revelando Santa Catarina aos catarinenses. Falar de TV Coligadas é, de fato, grifar em destaca-texto por mais de vezes a palavra “integração”. Foi o que foi feito. Antes das estradas serem asfaltadas (ou de serem “estradas” mesmo), o sinal da TV apresentou o estado a seus habitantes. Costumes, musica, economia, curiosidades. Era a presença da televisão na sua visão mais social: diante dos fatos do dia em qualquer ponto do estado, a vida do catarinense refletida como espelho em uma caixa luminosa, o mundo com as cortinas abertas para quem quisesse ver, telespectador ou televizinho.

Os anos passaram, e que difíceis eram. Nada que a turma de gente atrevida não tirasse de letra. Sob a batuta do mestre Loro, nasceram técnicos que, mesmo nunca tendo pego em um único refletor de estúdio, conseguiam armar um tambor de telecine em menos de um minuto sem falhas. A sinergia de apresentadores, diretores e funcionários era tal que enfrentar as estradas lamacentas até Florianópolis ou transmitir o Fantástico colorido numa autêntica “gambiarra” direto de Curitiba eram façanhas peleadas a unha por quem lá estava. O tal “fazer a hora” que Vandré falava em canção.

A Coligadas mexia com o povo e o povo se mexia no passo da Coligadas. Por causa da TV, tinha um “Escalabrino” circulando na frota de ônibus da Rodovel. Por causa da TV, enchiam-se auditórios para ver Os Brasileirinhos cantar Jovem Guarda no palco de Valdemar Garcia ou Mário Vendramel. Por causa da TV, cidades se conheciam e se enfrentavam em saudáveis gincanas. Por causa da TV, tínhamos o Brasil e o mundo em um jornal invisível todas as noites, num balet de “para” e “vai” dançado a exaustão nos estúdios. Tudo isso rodando, transformando, tudo por causa da TV.

Foram menos de 10 anos, sucumbidos diante de desacordos societários que, combinados ao pouso dos Sirotsky na capital, acabaram levando o sonho dourado tão rapidamente quanto ele chegou. Do hiato a Rede Catarinense de Televisão, da RCTV a venda para RBS, tudo isso em menos de um ano, acelerado e direto para a continuidade de uma história mas para o fim de uma época pioneira que, por outros caminhos, segue hoje completando meio-século de histórias e revoluções, mesmo envolta em esquecimentos e negligencias com seu passado. Fotos são raras, filmes praticamente inexistentes e testemunhos orais as únicas provas de vida resistentes ao tempo, mas igualmente perecíveis.

O que a Coligadas começou, ninguém pode tirar ou deixar esquecer: o pioneirismo, a história, a integração, a revolução dos hábitos e costumes e a mostra que, do zero, se faz um universo. De 1969 para cá muita coisa mudou, a TV mudou, o público e seus hábitos mudaram, Blumenau está mudando, mas o que não muda é a história, e essa ninguém tira ou esquece. Tá gravado na “menina dos seus olhos”.


Pra quem quer entender mais, dê o play abaixo no documentário “TV Coligadas – A Aventura do Canal 3”, um dos mais completos documentos da história da pioneira da TV em Santa Catarina. Vale a pena conferir, recordar, sentir um pouco desta história de cinco décadas com detalhes.

TV Coligadas, 1969 – sempre.

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