Meu vizinho, tricolor

Quando era eu mais jovem, tínhamos um senhor vizinho na casa da frente. Ele tinha um Mercedes boiadeiro, e vez em quando era um espetáculo assistir aquele caminhão e suas marcas do tempo manobrando no terreno para repousar pelo fim de semana.

Vilmar nos documentos, Checa pera os íntimos, incluindo nós aqui do outro lado da rua que conhecíamos muito bem a família que dividia aquela gleba de terra com a gente, sejam as histórias de um dia ou as necessidades de lá e cá. Ele era temido, os amiguinhos dos filhos deles dele tinham lá aquele respeito velado em forma de temor, talvez por não conhecer a doçura por detrás daquele bigode a lá marinheiro americano.

Aquele respeito disfarçado de temor tornou-se amizade com o passar do tempo e, já um adulto, não era raro quando ele batia aqui em casa pra conversar. A voz rouca, soando como trovão, as vezes a gente se entortava pra entender, mas ao mesmo tempo sentia-se aconchegado pela amizade e companheirismo de quem tanto tempo era personagem da vida neste quinhão do Progresso.

(Reprodução)

E um dia, descobri uma de suas preferencias: o tricolor das laranjeiras. Lá por 2010, o Fluminense saía de uma draga no ano anterior para se tornar o campeão que sempre fora em tempos áureos. Um time grande que atravessou o inferno nos anos 1990. Eu, de criança, não lembrava nem que existia um tricolor no Rio. Sou Vasco, tava concentrado em outras coisas.

E quando a gente se intera do passado do futebol é que a gente passa a ser menos clubista e mais apreciador em alguns aspectos. Flu e Vasco tiveram seus momentos. Diria até que o touro paraguaio escapou da minha “ira” quando tive a chance de entrevista-lo sobre 1984. Nós rimos deles na série C enquanto eles também gargalharam de nós na B por várias vezes, é por ai.

Mas, eu não sou aquele que seca maldosamente, nem mesmo o Flamengo, que quando seco e não dá certo, o merecimento sai do campo da rivalidade e torna-se respeito, fato raro nesse futebol de hoje. E sobretudo, quando há em jogo o grande troféu das Américas, o peso do respeito é ainda mais forte, maior ainda se ele vem às laranjeiras de forma inédita, sonhada, chorada e em cima do poderoso Boca Juniors, cuja camisa é uma representação argentina fora da Bombonera.

Sábado (04/11) eu sofri, tal como um torcedor do tricolor tentando digerir as dores de derrotas sul-americanas anteriores, sonhos desfeitos. Eu não sou de ver decisões, não sou afeito a tanto, pareço com o Luca de Montezemolo nos fins do GP de San Marino, quando sabendo da vitória garantida da Ferrari, tomava um helicóptero em Maranello e chegava triunfalmente em Ímola. Autorizado me chamar de arregão, mas sou eu.

Enfim, não queria ver tudo e acabei vendo. O roteiro era esperado: jogo difícil, pegado, decidido nos detalhes e na boa e velha catimba latino-americana: trava o jogo, segura a bola, se rola no chão, arma gritedo com juiz. O Boca, tentando catar o sétimo caneco e equiparar-se com o Independiente, o Flu brigando para sair do Mário Filho com aquela taça que ficaria linda no saguão das Laranjeiras… e deu tricolor, deu pó-de-arroz na cara dos xeneizes.

Demos uma volta na história e na América antes de voltar ao Progresso. Em 2023, há um silêncio típico de sábado neste pedaço de terra. Ao menos no plano físico, pois a minha mente pregava peças no meio de toda a sagração dos cariocas: uma buzininha de mão, daqueles de som irritante, vinda do outro lado da via, de alguém celebrando o seu time.

Ah, Checa! Tu deve estar sabendo dela ai por cima. Lembro que, seja gol da seleção ou do Flu, lá ia você pra janela buzinar com um sorriso aberto e louco na face. Daqui do outro lado, só exclamava comigo quase como um sinal de gol sem precisar ver o jogo: “deu gol! Tô ouvindo o Checa!”. Som renitente, irritante, mas saudável, feliz, explosivo de um cara que, de criança, aprendemos a ver apenas com as feições bravas do rosto.

Em uma, 2011, quando o Vasco precisava vencer o pó-de-arroz para seguir brigando pelo titulo nacional, ouvia a buzina do Checa celebrando o empate tricolor. Nos últimos minutos, eis que Fagner chuta sentado uma bola cruzada na área do Flu e nos dá a vitória. Ai foi a minha vez de me enervar no espírito torcedor: “Aqui é Vasco, poha!”, respondendo sorridente o vizinho, já rindo do ocorrido.

Ahhh… tempo bom aquele, de futebol, grande vizinho e outras responsabilidades. Tempo que se vai longe, que não volta mas recorta suas lembranças para ficarem guardadas num álbum de vida como o meu. Por estas, num dia como aquele sábado do grande feito, talvez ouça em mente a festa desmedida e rasgada do Checa e sua buzina, em estado de graça, sem dizer nada mas enchendo o ar de barulho e alegria.

Enfim, o Flu é dono da América. E como cruzmaltino, repito a frase já dita a exaustão: bem-vinda ao clube!

Checa… o dia do teu Flu chegou. A Thuane te avisa com certeza, numa prece.

Deixe uma resposta