Entre estes corpos suados e endorfinados numa tarde qualquer da academia, ela dá o último esforço no posterior. Subidas, descidas, caretas e dores, as contrações que puxam e soltam gentilmente, no súbito protesto de dor e vida.
Ela para, ajoelha-se com feição fingindo derrotada pelo esforço repetitivo e pelas puxadas que saiam da parte posterior até o mais alto dos nervos mentais. Levanta-se calma, chove lá fora, típico de quem luta até para andar após o combate molhado.
Até parece desanimada, diria um incauto a mirar o semblante sério, compenetrado, quase num mantra profundo enquanto a massa de músculos em perfeita sincronia leva a graça dela a caminhar lenta ao espelho, entre tantos com a mesma concentração ou uma selfie a mais.
Ela se contempla, de cima a baixo, entre as linhas moldadas com o tempo cravejadas de pequenas gotas d’água rolando pela pele que marca a si própria. O cérebro, este eterno desafiante, tenta miseravelmente empurrar-lhe pensamentos intrusivos que a coloquem de joelhos, que lhe deem a rasteira no trajeto.
Fecha os olhos, ela lembra daquele motivacional profundo de todo dia, revezando as pedaladas na ergométrica e lembrando de cada degrau que subia, sobretudo para buscar algumas das suas bonequinhas nos palcos que viam a multidão maravilhosa de seus músculos desenhados por entre sua graça feminina.
Era uma escultura, mas tão contemplativa quanto a Vênus de Milo, sobretudo quando grande parte de si estava a mostra para revelar até aonde aqueles caminhos tão regrados, disciplinados e determinados haviam lhe levado desde as batidas constantes nas mesas de pingue-pongue.
Em um momento, como se espantasse o cansaço e a leve dor de uma de suas pernas após a batalha contra a máquina, pega um peso nas mãos e o ergue até a altura do peito. Aquele momento, não se ouvia o eletrônico nas caixas de som e nem as conversas paralelas, apenas a chuva, fazendo mergulhar na reflexão de quem era e do que estava sonhando.
Por minutos, longos e acentuados como os movimentos que repetia a exaustão naquele salão agitado de corpos em reforma, contempla-se. Move pernas, flexiona braços segurando firme o peso contra o peito e observa calmamente o desenho que escrevia em si mesmo. O tornear de curvas fascinantes levemente encharcadas da última metalurgia corporal.
Filmes na cabeça, das tantas caminhadas, das regras matinais, das refeições cujo ritual era regrado a perfeição. Lembra dos tropeços, dos momentos onde o sorrateiro cérebro teima em querer ser intrusivo. Uma gota d’água rola lenta, saindo de um dos olhos como se a emoção a lembrasse da menina-mulher que crescia nos movimentos tão determinados que fazia.
Era apenas ela e o espelho, o peso e a chuva. Não haviam ali os papéis da academia e o jaleco de discípula de Freud. Não haviam as regras, normas e frases motivacionais. Reverberavam a própria voz lembrando dela própria, bem como as vozes de tantos que a observavam não como uma perfeita modelo de beleza, mas uma fonte inesgotável de inspiração.
A gota corre o rosto, desenhando seu caminho pelo pescoço e passeia por um corpo cansado mas ainda fervendo em vigor e adrenalina. Desce pelo abdômen seco, firme e talhado em dobras e desenhos, escorre justo na perna onde a dor mais protesta, como um calmante depois da briga até, finalmente, morrer no chão.
Por hora, os lábios tremem, como se a emoção quisesse timidamente saltar os olhos. Os braços levemente abaixam o peso e ela dirige-se quase como se, na coincidencia do tempo, a tensão e as confusões dessem lugar ao mesmo sol que brilhava lá fora, revelando a plenitude de corpo e alma de quem sonha, grita, chora sozinha, sorri e vence, desfalece no sono e volta as regas a cada dia.
Ela sabe aonde chegou, no silêncio dela própria onde nem um “olá” de alguém perdido passa pelos ouvidos. Dali, talvez mais uns cinco stories para as redes e os passos que a transformação de fiel atleta cravejada de suor na doçura da cútis trabalhada recoberta pelo jaleco que cuida e zela da saúde mental.
É mais um dia de regras e determinações. Trabalhos frenéticos de músculos ainda pulsantes.
E no reflexo do espelho, satisfeita, ela sorri.
Gratidão por mais um dia, e que outro venha.