Som n’A BOINA #35: Gilbert e Clair

Existem pessoas que, infelizmente, tiram seu tempo para cultivar a ignorância. Gente desocupada, sem cultura ou pensamento que não seja o bitolado em crenças distorcidas ou carregado de uma paranoia alimentada por demonizações religiosas e inúteis sociais que trocam as cruzes por cifras, armas e ódio.

E várias provas para isso estão a nossa volta em vários lugares, vários escritos e atitudes destas pessoas. Uma delas me pegou de sobressalto neste sábado e, por trás da distorção de uns e outros, esconde-se uma história tão doce que a musica internacional não tem capacidade (felizmente!) de apagar: A belíssima “Clair”, um dos grandes sucessos do irlandês sorridente Gilbert O’Sullivan.

Um irlandês cantando poesias: Gilbert O’Sullivan descobriu a musica na adolescência e fez dela sua arte e ganha-pão, com grandes sucessos nas paradas mundias no início dos anos 1970 (Reprodução)

Brevemente contando uma história, Gilbert – ou melhor, Raymond Edward O’Sullivan – nasceu em dezembro de 1946 em Waterford, na ainda jovem Irlanda. Filho de um açougueiro e de uma padeira, foi pra Inglaterra ainda aos sete anos de idade e, na adolescência, descobriu o gosto pela musica, especialmente pelo piano, e já na faculdade começava seus primeiros ensaios como cantor.

Era vendedor na C&A de Oxford quando um amigo que trabalhava no mesmo lugar lhe deu a oportunidade de apresentar seu trabalho para a CBS, onde se estabeleceu como compositor por cinco anos. No entanto, o deslanchar da carreira viria no início dos anos 1970, com um estilão tipico de “garoto irlandês” e com sucessos marcantes como “Matrimony”, “What’s In a Kiss” e, claro, a apoteótica “Alone Again (Naturally)”.

Desde o deslanchar da carreira, a parte empresarial de Gilbert era gerida por Gordon Mills, um peso-pesado da musica que já tivera embaixo de suas asas de empresário gente do naipe de Tom Jones e Engelbert Humperdinck. Para o jovem irlandês, Mills também tornara-se uma espécie de “irmão mais velho”, conselheiro, figura paterna e parceiro em animados momentos de diversão fora dos palcos.

Gordon Mills, empresário de O’Sullivan, e sua esposa, a modelo Jo Waring. Em uma noite, o amigo Gilbert passou de cantor a babá e fez da pequena Clair (abaixo) sua inspiração para uma canção permeada de inocência, de um adulto deslumbrado e inspirado pela doçura curiosa de uma criança (Reprodução)

Gordon era casado com a bela modelo Jo Waring e tinham uma linda filha: a pequena e meiga Clair. E é aqui que a história toma seu rumo poético e inocente que, felizmente, a grande maioria das pessoas capta como beleza em forma de canção, que tem sua poesia e sua graça ao falar da inocência de uma criança. Clair tinha apenas três anos quando Gilbert a destinou esta letra tão especial.

Tudo começou numa noite qualquer, quando Gordon pediu a Gilbert um favor simples: cuidar da sua filha por uma noite para ele e Jo saíram para jantar fora. Coisas de amigos, e lá o cantor tornou-se babá por uma noite e deste momento simples, entre a lição da escola e brincadeira, Clair desabou de sono e pediu gentilmente ao “Tio Ray” (Ray, do seu nome verdadeiro, Raymond) para ir dormir.

Era um momento tão especial e inspirador que Gilbert não teve dúvidas: desceu até a sala e sentou-se no piano de Mills. Ali mesmo começou a compor a melodia da música que, simplesmente, levava o nome da pequena: “Clair”, lançada naquele 1972 tão promissor para Gilbert. Uma letra doce, simples, inocente e poética, que começa no assovio de O’Sullivan e termina na risada simples de Clair, sucesso nas paradas, poesia no ar.

A melodia de Clair sobreviveu ao tempo e correu pelo mundo, trazendo pra muitos lembranças de bons tempos, momentos de amor ou de uma juventude passada há muito. No entanto, o veneno da ignorância de alguns tornou uma melodia doce num “hino demoníaco”, uma canção que incita a pedofilia com sua letra “que declara o amor de um adulto por uma criança”. Duvida? Se quiser, pesquise e depare-se com textos tanto no Brasil como pelo mundo que pregam essa distorção.

Com afirmações como estas, me pergunto aonde perdeu-se a inocência e a simplicidade sentimental de uma geração? A deturpação de valores cristãos e simples de amor e carinho parece interessante para muitos que enxergam tudo como uma ameaça a sempre falada “moral e bons costumes”. E nessa base, a regra é ir a caça de qualquer coisa que aparece pela frente em busca de encontrar “os demônios perdidos de satã”, independente se em uma musica ou coisa qualquer. “Como um adulto declara seu amor a uma criança de três anos?” perguntam os insanos…

Não dá para comparar, claro, com a situação atual do embate entre denominações cristãs e o Porta dos Fundos por conta do polêmico especial de natal, mas as raias da ignorância que enxergam os males por tudo não tem limites. Infelizmente nem mesmo letras que demonstrem na prática o carinho de um alegre “tio” com uma criança inocente e deslumbrada com o momento de alegria não escapam deste crivo nefasto. Coisas de uma sociedade contaminada pela ignorância e egocentrismo de ideias e pensamentos, onde tudo é perigoso e contrário “ao que está na bíblia”.

Felizmente a beleza de Clair permanece até hoje para quem a ouve com ouvidos sãos. Gilbert e Gordon chegaram a romper a amizade por conta da briga pelos direitos da musica, algo que o irlandês jamais quis que tivesse acontecido. Mills morreu em 1986 e O’Sullivan é casado desde 1982, canta e compõe até hoje e a pequena Clair é uma senhora de 51 anos que já encontrou-se várias vezes com Gilbert, sempre com o mesmo sorriso que encantou o cantor há tanto tempo: sorriso de gratidão por uma infância marcada por brincadeiras, carinho e, claro, uma canção.

Ao ignorantes, morram na ignorância. E ao amor, que ele continue por este 2020 afora. Andamos precisando de mais inocência e ternura, como a de Gilbert e Clair. E se estão esperando que eu “explique a letra”, esperem sentados. É algo que se sente, não se contextualiza.

Até o próximo SnaB! E pra arrematar, “cenas fortes” do carinho de Gilbert e Clair em 1972…

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