(Douglas Sardo)
Aumenta que é SOM NA BOINA!
Pois sim, estamos inaugurando um espaço musical aqui no blog. Essa ideia vêm maturando há alguns meses, pois a música é um dos assuntos favoritos de muitos que escrevem por aqui. Portanto, já estava mais do que na hora de criarmos um ambiente para falarmos sobre nossos discos e artistas prediletos. Momentos históricos e tudo que nos embala neste admirável mundo da música. E isso tudo toda sexta-feira aqui em A BOINA. Pro fim de semana começar com som bom.
O grande problema: por onde começar?
Algum tempo atrás, quando do anúncio de que Bob Dylan seria premiado com um Nobel de literatura, André sugeriu que era uma boa oportunidade para abrirmos esse canal, falando sobre um grande artista, um álbum especial, um momento na música e tudo mais. Só que minha impressão sobre o impacto da premiação estava correta: Dylan sequer foi receber o prêmio. Logo, ele não deu a mínima, e achei que não deveríamos abrir com ele por conta desse mini-evento.
Continuamos batendo cabeça para iniciar o SnaB em alto nível, quando nos deparamos com Janeiro, passado um ano da morte de David Bowie, e aí não tive dúvidas: a inauguração tinha de ser com o Homem que caiu na terra. A morte de Bowie no início do ano passado foi uma das primeiras de uma série de óbitos no mundo da música que marcou negativamente 2016.
Particularmente para este que vos escreve, David sempre foi um dos maiores, suas realizações artísticas estão em outra dimensão! Um perda muito sentida, amenizada pelo presente que nos deixou, o seu último e fantástico disco: Blackstar. Mas não é sobre esse álbum que vamos falar. Para abrir o SnaB, vamos fazer uma viagem no tempo, de volta para o final de 1976 e início de 1977…
Side effects of the cocaine
Em meados de 1976, David Bowie estava a beira de um colapso: após se desvincilhar do seu alter-ego Ziggy Stardust, o personagem que estava literalmente engolindo o seu criador, o britânico se via afundado em um alarmante vício em cocaína, que aumentava junto com sua frustração com a vida de Pop-Star na Los Angeles dos anos 1970. Para piorar, seu casamento com Angie Bowie estava desmoronando (os dois se divorciariam em 1980), e Bowie estava em guerra com mais um de seus agentes, Tony DeFries.
A tentativa de refúgio se refletia em seus trabalhos, com o abandono do Glam Rock em busca de novas sonoridades, chegando no Soul-Funk com Krautrock de Station to Staion. Com essa pérola no bolso, Bowie saiu em turnê pela América do Norte e Europa em 1976, na Isolar Tour.
Durante as apresentações ele encarnava um novo personagem, o Duque da faixa título do álbum. A turnê foi muito bem sucedida, mas o estado mental do cantor parecia comprometido, com David se metendo em várias polêmicas, dando declarações favoráveis a Adolf Hitler, endossando comentários anti-imigração de Eric Clapton, e afirmando que os britânicos se beneficiariam de um governo fascista…
E tinha mais confusão pela frente. Em passagem pelos Estados Unidos, mais precisamente em Rochester, Bowie acabou sendo preso, após uma festa em que duas garotas se revelaram agentes do departamento de narcóticos. Bowie, Iggy Pop e Dwain Vaughns foram levados por posse de maconha.
Após se livrar da cana, no final da turnê, em Londres, o cantor alegadamente fez a saudação nazista em passeio de carro aberto pela cidade. Mais um episódio controvertido. Anos mais tarde, o músico se justificaria dizendo que as drogas o levaram a um ponto em que chegou a duvidar da própria sanidade. Com várias overdoses nesse período, Bowie precisava desesperadamente encontrar uma saída.
Mudança para Europa
A alternativa que o músico achou foi passar um tempo no Velho Continente. Inicialmente, Bowie se mudou para a Suíça logo após o fim da turnê. Pelo menos foi lá que ele deixou sua mulher e seu filho. Não demorou muito para ele e Pop se instalarem na França, no Chateau d’Herouville. Tudo agendado por sua salvadora oculta, Coco Schwab. Inicialmente é claro que Bowie e Pop caíram na farra, rodando pela Europa em busca de bebidas e mulheres, quer dizer, não necessariamente mulheres…
Uma das histórias que se contam desse período, é que Bowie teria se apaixonado por Romy Haag, transexual holandesa que vivia na Alemanha como dançarina. Os dois teriam se conhecido durante a passagem da Isolar Tour por Berlin. Alguns afirmam que a estada na Europa aconteceu para que os dois passassem mais tempo juntos.
O romance era bastante escandaloso pra época, e a esposa de Bowie logo chamou advogados para iniciar um divórcio. Dizem até que Bowie chegou a deixar um bigode e um cabelo bem curto para se disfarçar e que o romance só não continuou porque não seria interessante do ponto de vista comercial para David, especialmente nos Estados Unidos.
Momento TV Fama do texto à parte, após algum tempo, Bowie e Pop finalmente começaram a trabalhar sério. Pop buscando um caminho para iniciar sua carreira solo, enquanto Bowie estava presente para ajudar o colega. De fato, Bowie aproveitou usou o álbum de Pop como laboratório para suas próprias idéias. David já vinha sintonizando o som underground emergente da Alemanha, com bandas como Kraftwerk, Neu!, Can, e outros. Mas na passagem pela Europa essa influência se materializou, com uma busca por sons eletrônicos, também inspirados em trabalhos como Discreet Music de Brian Eno, com quem Bowie iniciou parceria na época.
O resultado das primeiras sessões de gravação foi The Idiot, uma mistura do Punk com a sonoridade eletrônica que estava na ordem do dia para Bowie. O álbum é reverenciado atualmente como um dos melhores trabalhos de Pop, porém, não muito representativo de sua carreira, famosa pelo som pesado do Punk-Rock. Para Bowie, era apenas o começo.
Cabe notar que The Idiot foi completo em Agosto de 1976, mas só seria lançado em março de 1977, meses depois do novo disco de Bowie, talvez numa manobra do britânico para evitar que as pessoas pensassem que estava sendo influenciado por Pop. Com o primeiro teste concluído, inciaram-se então os trabalhos para um novo álbum. Parte do time já estava na área: Carlos Alomar (Guitarra), Dennis Davis (Bateria) e George Murray (Baixo) gravaram em The Idiot. Mas Bowie ainda contou com o guitarrista escocês Ricky Gardiner, e o pianista Roy Young. E claro, Brian Eno (tecados e sintetizadores) e Tony Visconti (produção).
Brian Eno
Peça central do álbum. Ele havia participado do Roxy Music de Bryan Ferry e chamou a atenção de Bowie ao lançar alguns trabalhos solos de música vanguardista, música ambiente na verdade. A influência do som minimalista de Eno é muito notável no lado B de Low, com todas as faixas inseridas em uma sonoridade bem diferente de tudo que David já havia lançado.
Mas Brian não apenas adicionou efeitos, ele influenciou no método de composição das músicas, departamento esse onde, na verdade, recebeu menos crédito do que deveria. Por outro lado, é muito comum ler e ouvir por aí que Brian foi o produtor do disco, o que não é verdade…
Tony Visconti
It Fucks with the fabric of time. Foi com essa frase que Tony Visconti definiu as capacidades do H910, o alterador digital de afinações que a Eventide acabara de lançar (o primeiro da história), e foi com essa frase que Tony deixou David Bowie e Brian Eno enlouquecidos. Eu tinha que falar algo assim para eles se impressionarem, diria o produtor anos mais tarde.
Tony era um velho colaborador de David, e foi questionado sobre que tipo de novidades ele teria para produzir um novo álbum, quando soltou a famosa frase. O aparelho teve um papel determinante no som alcançado no disco. Além de corrigir afinações de voz, também foi extensamente utilizado na bateria, fazendo o som da caixa esparramar.
Após o lançamento de Low, muitos procuraram por Tony para saber como ele havia conseguido o som tão peculiar. Malandro, Visconti não respondia e ainda perguntava como a pessoa imaginava que ele havia conseguido, recebendo algumas idéias muito bacanas como resposta.
O período em que o disco foi gravado é bastante problemático para Bowie, graças a situação de seu casamento, os problemas com seu empresário, e sua tentativa de se livrar das drogas. Mesmo assim, o clima das gravações foi muito agradável. O desafio era grande, e o cantor teve que deixar todos cientes de que se tratava de uma experiência, e que o resultado porderia nunca ser utilizado. Os músicos sabiam que poderiam estar perdendo um mês inteiro para nada…
Durante as sessões, Bowie tocou para a banda alguma coisa que havia composto para o filme The Man Who Fell to Earth, no qual fez o papel principal. Todos ficaram bastante impressionados com o trabalho. Para a decepção de Bowie, porém, sua trilha não seria utilizada. O diretor do filme, Nicolas Roeg, não gostou do resultado e acabou chamando John Phillips (The Mamas and the Papas), para fazer as músicas.
Infelizmente as fitas com a trilha sonora que Bowie compôs estão muito bem escondidas, e até hoje despertam curiosidade. Muitos gostariam de ouvi-las para saber até que ponto o trabalho foi um marco-zero do que viria a ser o Low. Brian Eno por exemplo, já afirmou que uma ou outra música do disco havia sido composta para a trilha, mas não há como comprovar tal afirmação.
Apesar de toda influência do Krautrock em voga no underground europeu, o Lado A de Low acabou sendo pontuado pelo som R&B da banda, com a bateria fantástica de Dennis Davis, o baixo de George Murray e as guitarras de Carlos Alomar e Ricky Gardiner roubando a cena em alguns momentos.
Anos mais tarde, ao comentar sobre a influência de artistas como Kraftwerk em Low, Bowie disse que a principal diferença do seu trabalho para os alemães, era que enquanto os germânicos faziam um som de ritmo mecânico, tudo muito calculado, como uma engrenagem eletrônica, ele calcou seu som em sua banda cheia de suingue. Perfeita explicação.
Tracklist (Lado A)
1 – Speed of Life (Bowie)
Esse número instrumental abre o disco e é um belo exemplo do que Bowie disse. O som da banda determina tudo, apesar de a guerra eletrônica criada por Eno também chamar bastante a atenção. Bowie fez tentativas de letras, mas nenhuma lhe satisfez.
2 – Breaking Glass (Bowie, Dennis Davis e George Murray)
Nada mais justo o crédito para Davis e Murray, já que a banda rouba a cena nesse momento. O trabalho do baterista Dennis Davis particularmente merece destaque. Assim como em vários momentos do disco, Visconti usou seu H910 para dar um tratamento especial no som da bateria, sampleando o som da percussão e ecoando-o um semi-tom abaixo. Depois adicionou feedback, e o resultado é que Davis acertava a caixa da bateria, ouvindo no seu fone apenas o “crack”, mas o eco do som continuava.
Inicialmente, Bowie relutou em usar o efeito, então Visconti diminuiu o truque na sala de controle, mas o manteve nos fones do baterista, e o resultado é que Davis fez um dueto com seu próprio eco, variando o poder e a duração das batidas na caixa, especialmente na sequência de um! um! um-dois da introdução. Um desses lances mágicos da história do Rock.
A letra parece abordar os excessos de Bowie em Los Angeles, e também uma briga que ele teve com sua esposa durante as gravações do disco. Destaque para a voz de Bowie, claramente emulando o estilo de alguns vocais do Kraftwerk.
3 – What in the World (Bowie)
Quem já jogou um NES (Nintendo Entertainment System) com certeza vai estar familiarizado com os barulhinhos eletrônicos dessa faixa. Mais uma vez, Eno cria uma guerra eletrônica frenética que permeia todo o número. Nos backing vocals, Iggy Pop.
4 – Sound and Vision (Bowie)
I will sit right down, waiting for the gift of Sound And Vision.
Uma música sobre tentar escrever uma música. Provavelmente a faixa mais acessível do disco (ela até foi utilizada em um comercial do Sony Xperia Z em 2013). Destaque para os backing vocals de Mary Hopkin, à época esposa de Tony Visconti, dando um tom bem alegre para a canção, que sempre foi uma das favoritas de Bowie.
5 – Always Crashing in the Same Car (Bowie)
Muito se comenta sobre a origem da letra dessa música. Seria sobre Bowie jogando seu carro em cima do veículo de um traficante? Uma tentativa de suicídio? Especulações a parte, a música parece ser uma reflexão sobre seu período em Los Angeles, uma pessoa que insistia no erro, um looping infinito, um vício.
Mais uma vez a bateria de Davis é vítima do trabalho de Visconti. O som do hit-hat na introdução é processado para soar como mais um sintetizador, juntando-se ao Chamberlain de Bowie. Destaque para os efeitos de Eno, que emulam um Theremin, e claro, o fantástico solo de Ricky Gardiner, que toma conta da segunda metade da música.
6 – Be My Wife (Bowie)
Mais uma vez Gardiner detona no solo. Porém, no meio das guitarras, da seção rítmica, do Farfisa de Roy Young, está o vocal de Bowie. A letra parece deixar sempre uma ideia incompleta, como se ele estivesse com preguiça de cantar.
7 – A New Career in a New Town (Bowie)
O título é auto-explicativo, sobre a mudança para a Europa. Sentimento traduzido através do contraste e fusão do som eletrônico e moderno de sintetizadores com o material mais americano e orgânico da gaita de boca, que funciona como uma faixa vocal. Muito sugestivo o Lado A terminar com um instrumental, claramente um prelúdio para o que viria na sequência.
Tracklist (Lado B)
8 – Warszawa (Bowie e Eno)
Outro título que dispensa explicações, sobre a cidade de Varsóvia (Warsaw em inglês). Bowie teve algumas passagens por lá em 1973 e 1976. A desolação da cidade destruída pela guerra e nada mais. Essa música foi composta em grande parte por Brian Eno, quando Bowie esteve ausente das seções (ele teve de comparecer a um tribunal em Paris para resolver questões legais do rompimento com seu empresário). Antes de viajar, pediu para que Brian criasse algo muito emotivo, quase religioso.
Durante um dia qualquer, Eno ouviu o filho de Tony Visconti (então com quatro anos), brincando no piano tocando três teclas consecutivas: La, si, Do. Brian foi até o piano e completou a melodia junto do menino e isso é a base de Warszawa. Eno utilizou seu conhecido método aleatório de composição aqui. Ele estruturava a música com uma série de clicks metronômicos, numerava esses clicks, e então simplesmente jogava uma mudança de acordes ou uma linha de baixo em um desses números. Uma forma curiosa de fugir de composições lugar-comum.
Quando Bowie retornou de Paris, ouviu a nova composição e em questão de minutos fez uma letra:
Sula vie dilejo
Solo vie milejo
Cheli venco deho (2x)
Malio
Helibo seyoman
Cheli venco raero
Malio, malio
Os vocais são uma mistura de referências linguísticas, que lembram muito a música Helokanie do coral Slask, um disco que Bowie comprou na Polônia, durante uma de suas viagens de trem.
9 – Art Decade (Bowie)
Apesar de Bowie receber o crédito solo pela composição, essa música é essencialmente um trabalho de Brian Eno. Bowie tinha uma composição básica para piano, mas não gostou e acabou descartando antes de ir para Paris. Enquanto o cantor esteve ausente, Eno reviveu a música, adicionando camadas de sintetizador, o efeito de trompete elefante, e outros detalhes. Após seu retorno, David colocou mais alguns detalhes, a percussão por exemplo, que foi feita no sintetizador Chamberlain.
O tema da música é a cultura de Berlin Ocidental. Nas palavras de Bowie: uma cidade arrancada de seu mundo, arte e cultura, morrendo sem esperança de retribuição.
10 – Weeping Wall (Bowie)
No disco, essa faixa é o muro que separa Art Decade (Berlin Ocidental), de Subterraneans (Berlin Oriental). A última música gravada para o disco, foi inteiramente feita no Studio Hansa, em Berlin. Após voltar do tribunal em Paris, Bowie estava bastante frustrado e decidiu mudar a base de operações, deixando o Chateau e se mudando para a cidade dividida.
Só o próprio Bowie gravou aqui, utilizando a melodia de Scarborough Fair como base, para criar uma faixa extremamente tensa, que prepara terreno para o Gran-Finale. Brian Eno sugeriu que essa música foi composta para a trilha do filme The Man Who Felt to the Earth, algo que Bowie negou.
11 – Subterraneans
A música mais velha do disco, foi gravada originalmente em 1975 no Cherokee Studios em Los Angeles. Tanto o baixo quanto a guitarra estão ao contrário nessa faixa, algo remanescente da trilha sonora que Bowie fez para The Man Who Fell to the Earth. É bem possível até que a composição toda seja original da trilha, algo que Bowie novamente nega.
A ideia aqui é uma espécie de funeral para as almas que não passaram pelo portal, que ficaram aprisionadas em Berlin Oriental por causa do muro. O saxofone jazzístico que permeia a faixa representa a memória, o passado.
Sem meio termo
Apesar do experimentalismo envolvido, Low vendeu bem, talvez embalado pelo sucesso de seu antecessor. A reação dos críticos porém, foi dividida. Muitos considerando as trilhas sonoras do Lado B banal. Entre os fãs, porém, o choque foi grande. Muitos simplesmente detestam o álbum até hoje, ou o consideram superestimado. Outros tantos morrem de amores e até o consideram o melhor disco da carreira de Bowie.
Gosto não se discute, mas a importância e o simbolismo desse álbum são inegáveis.
E você leitor? Já ouviu Low? Gosta de David Bowie? Não gosta? Tudo bem, deixe nos comentários uma sugestão com artistas e álbuns que você gostaria de ver aqui no SnaB.
Um grande abraço, muito som e até a próxima.
Agradecimentos ao amigo Júlio Slayer Oliveira.