(Douglas Sardo)
Semana passada o André trouxe aqui um pouco da história d’Os Incríveis, uma banda seminal na história do rock brasilês. Hoje vamos voltar nossos olhos e ouvidos para uma das maiores bandas do gênero: The Rolling Stones. Mas não vou me alongar falando sobre a longa carreira do grupo, e sim sobre uma música que considero fundamental na discografia dos britânicos: A faixa seis do álbum Let It Bleed, a sádica Midnight Rambler.
Diante de pérolas como Brown Sugar, Satisfaction, Jumpin’ Jack Flash e Sympathy for the Devil, uma música longa como Midnight Rambler fica longe de ser um clássico popular, mas se você prestar atenção irá perceber que essa música reúne o quê de melhor a banda pode produzir, em meio a muito caos, como sempre.
Vejamos então o cenário daquele início de 1969 para entendermos melhor:
Problemas com Jones e um estrangulador como inspiração
Em dezembro de 1968 os Stones lançavam para grande aclamação popular, Beggar’s Banquet, álbum que marcou o retorno do grupo às suas raízes com um som mais bluseiro após a viagem psicodélica de 1967. Agora eles planejavam sair em turnê pelos EUA após quase dois anos sem se apresentarem ao vivo, só que haviam alguns empecilhos para isso. Com integrantes fichados por posse de drogas, era difícil conseguir vistos para trabalhar na América. Se essa questão podia ser resolvida eventualmente, uma outra situação minava a produção da banda: o estado psicológico de Brian Jones.
Dispensado por Anita Pallenberg em 1967, Jones agora tinha que ver sua ex-namorada vivendo com ninguém mais ninguém menos que Keith Richards. Mas não foi só isso que ele perdeu para seus companheiros de banda. Com a mudança no estilo musical em andamento, as colaborações exóticas de Jones perderam eco, sendo dispensadas por uma banda que agora era liderada de forma mais clara por Richards e Mick Jagger e sua verve mais crua.
Privado de sua liderança, não demorou muito para Jones se afundar nas drogas e depressão. Logo ele começou a aparecer totalmente fora em sessões de gravações e ensaios. Com o guitarrista sem condições de se apresentar em público, uma nova turnê se tornou impossível e a banda decidiu voltar aos estúdios no início de 1969 para um novo disco.
Durante esse período, Richards e Jagger passaram alguns dias de férias na Itália, mais precisamente na vila italiana de Positano. Eis que nesse lugar belíssimo, os dois compõem uma música falando de um vagabundo que anda pelas noites, pronto para estuprar e estrangular suas vítimas, pulando como uma pantera enquanto quebra janelas, invadindo a casa de suas vítimas. Porque deveríamos escrever uma música tão tenebrosa como essa nesse lindo, ensolarado lugar, eu não sei. Escrevemos tudo lá — as mudanças de tempo, tudo, diria Jagger em 1995 para a revista Rolling Stone.
A inspiração para a letra da música foi a história de Albert DeSalvo, o Estrangulador de Boston, réu confesso de treze assassinatos entre 1962 e 1964 na região de Boston. Suas vítimas geralmente eram estupradas e depois estranguladas com peças de vestuário. Após estes homicídios, DeSalvo ainda cometeria vários estupros até ser preso em 1967. Anos mais tarde ele seria encontrado morto, esfaqueado na prisão.
No entanto, DeSalvo não seria a única história macabra rondando os Stones, longe disso…
A demissão/morte de Jones: Do tributo à volta aos holofotes
O novo álbum era planejado para Julho mas o projeto foi atrasando. Em meio às gravações, a banda enfim consegue agendar uma turnê em solo americano para Novembro. Só que estava difícil conseguir visto para Jones. A solução: demiti-lo. E assim foi feito em 8 de Junho de 1969. Na madrugada de 2 para 3 de Julho, Brian Jones foi encontrado morto em sua piscina.
Dois dias depois, em 5 de Julho, os Stones se apresentavam para o público pela primeira vez em dois anos, em show marcado antes da tragédia para ser uma apresentação do novo guitarrista da banda, Mick Taylor. Evidente que o motivo do show mudou, tornando-se um tributo ao amigo perdido. Foi nessa apresentação histórica no Hyde Park para um público estimado entre 250 a 500 mil pessoas que os Stones debutaram suas novas músicas, entre elas, claro, Midnight Rambler.
Se em termos emocionais a apresentação no Hyde Park foi memorável, do ponto de vista técnico, ela foi um fiasco. As guitarras estavam desafinadas, e Jagger tentava impulsionar uma banda enferrujada por tanto tempo longe da estrada. O mesmo não seria dito das apresentações da banda pelos EUA no final de 1969. Os Stones estremeceram a América com uma turnê histórica, levando artistas de apoio do naipe de Terry Reid, B.B. King, Ike & Tina Turner e em algumas oportunidades o lendário Chuck Berry. A apoteose foi no Madison Square Garden, e a turnê rendeu 1 milhão de dólares apenas em bilheteria.
Óbvio que os hits brilharam, mas uma música em especial levava os fãs ao êxtase. O novo disco só seria lançado após o final da turnê, mas Mick Jagger já encarnava o personagem de Midnight Rambler, com a música ganhando alguns minutos a mais de improvisação, enquanto o front-man chicoteava o chão com seu cinto, dando gritos e gemidos arrepiantes, levando à loucura fãs, groupies, junkies e todos os tipos que presenciavam o espetáculo.
A chegada de Mick Taylor abria uma nova possibilidade para a banda. Na versão de estúdio, Keith teve que tocar todas as guitarras, enquanto Brian tocou apenas percussão. Agora a banda dispunha de um guitarrista espetacular de blues, que preenchia os espaços com solos fluidos e melódicos nunca antes ouvidos em seus trabalhos anteriores.
A turnê só não foi um sucesso total por conta de mais uma tragédia, a morte de Meredith Hunter no último show em Altamont, mas essa história a gente conta outro dia. Não demoraria muito para a canção se tornar a espinha dorsal das apresentações. Uma ópera de blues. Todas as outras músicas que fizemos, qualquer outra banda poderia ter feito, menos essa. Ninguém além de nós poderia ter escrito essa música, diria Richards em 2012 para o documentário Crossfire Hurricane.
Midnight Rambler é a síntese dos Rolling Stones: Um som de blues, violento, com tons de perversão, brutal, suja, e é presença obrigatória em qualquer apresentação da banda até os dias de hoje. E que continue sendo pelos próximos 50 anos.
Vida longa aos Stones! E até o próximo Som N’A BOINA!