Som n’A BOINA #13: Chegou ao fim a misteriosa trajetória de Belchior

(Douglas Sardo)

O mês de abril acabou com mais uma baixa no campo da música brasileira. Após anos exilado (por opção própria) da vida pública, Belchior faleceu por conta de um infarto no último domingo (30/04). Terminou sem alardes, como não poderia deixar de ser, mas cheia de reverencias a trajetória do tal rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior pela música nacional.

O SnaB não poderia ficar indiferente e para prestar nossa homenagem a um dos maiores letristas de nossa música, tentamos pintar um retrato do cantor através dessas linhas tortas…

Belchior: sempre pronto para um papo, som, dentro da noite (Antônio Lucio)

Como todos sabem, Belchior “sumiu”. E ele sumiu de várias formas ao longo de seus 70 anos de vida. Nascido em Sobral, no interior do Ceará, o jovem de nome extenso – Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes – começou a se envolver com a música da forma como tantas outras crianças pelo Brasil a fora o fazem: cantando em feiras e outras pequenas festividades, além de uma ponta como poeta repentista.

Aos 12 anos de idade, e não, ele não nasceu com bigode (Acervo Nilson Belchior)

Da família numerosa – tinha 22 irmãos – herdou certa musicalidade. Seu pai era flautista e saxofonista e sua mãe cantora de igreja. Das ondas do rádio vinham as grandes vozes de nomes como Ângela Maria, Cauby Peixoto, Nora Ney e outros.

Apesar dessa bagagem, Belchior hesitou por um momento na carreira musical com o ingresso na faculdade em Fortaleza para estudar Medicina no início dos anos 1960 denuncia. Não era para durar, mas foi tempo suficiente para fazer amizades com jovens como Fagner, Ednardo, Rodger Rogério, Teti, Cirino, enfim, boa parte dos artistas que ficariam conhecidos como o Pessoal do Ceará.

Os tempos de universitário instigaram sua disposição para leitura, marca que ficaria registrada em sua obra musical. Na segunda metade da década de 1960, como não poderia deixar de ser, largou a faculdade e foi atrás do sonho da carreira artística, participando de festivais pelo Nordeste.

No início dos anos 1970 chegou ao Rio de Janeiro, onde participou e venceu o IV Festival Universitário da MPB, com Na Hora do Almoço. A canção foi defendida por Jorge Melo e Jorge Teles e seria o primeiro compacto da carreira de Belchior em 1971.

Mas foi Elis Regina que deu o maior impulso à carreira do cearense. A cantora ganharia reputação de descobridora de talentos ao gravar canções de artistas pouco conhecidos, e Belchior foi um desses casos. Em 1972 Elis regravou Mucuripe, uma parceira isolada entre Belchior e Fagner.

Com Raimundo Fagner. A parceria durou pouco por conta de divergências de estilo, mas aqui os dois dividem o palco em algum lugar em 1982 (Athayde dos Santos)

Alguns anos mais tarde, em fins de 1975, Elis iniciava o show que mudaria para sempre a carreira de Belchior. No espetáculo Falso Brilhante a cantora incluiu em seu repertório novas canções do Cearense, entre elas Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida.

O disco fundamental de Belchior e uma das capas mais marcantes da música brasileira. (Reprodução)

As músicas de Belchior caíam como uma luva para o show temático da cantora, cada vez mais ligada nas questões políticas e sociais do Brasil. Dessa turnê resultaram dois discos de certa forma interligados em 1976: Falso Brilhante, com as músicas do show de Elis gravadas em estúdio, e Alucinação, o segundo disco de estúdio da carreira de Belchior.

Alucinação foi o tal do divisor de águas. Músicas como Apenas um rapaz Latino-Americano, Velha Roupa Colorida, Como Nossos Pais, A Palo Seco e a faixa-título tiveram grande impacto e foram regravadas por diversos artistas.

O aspecto contestador e filosófico é marcante no disco. Um retrato da vida de quem saía do interior para buscar felicidade na cidade grande e muitas vezes tinha que morar na rua. O álbum era um ataque poético ao capitalismo e à miséria humana, além de conter algumas tiradas sarcásticas direcionadas a alguns nomes estabelecidos da MPB.

Em Apenas Um Rapaz Latino Americano, por exemplo, temos a frase Um antigo compositor baiano me dizia: “tudo é divino, tudo é maravilhoso”.  Ao que Belchior conclui: Mas sei que nada é divino, nada, nada é maravilhoso. Disparo direto e reto para o Divino Maravilhoso de Caetano Veloso.

Fazia parte da verve dos cearenses ironizarem os tropicalistas, se apresentando como a nova música brasileira contra a velha música. Mas Belchior não era só pedra. Ele virou telhado quando Raul Seixas cantou Agora eu sou apenas um Latino-Americano que não tem cheiro nem sabor, entre outras tiradas ao chato que me grita nos ouvidos como ele supostamente descreveu Belchior em Eu também vou reclamar.

Comenta-se que A Palo Seco seria uma resposta a Raulzito por conta dessas linhas. Trocas de farpas a parte, bons tempos em que o mainstream da MPB tinha rivalidades com caras do naipe de Belchior, Caetano e Raul. O que não é pouca coisa no cenário musical brasileiro daqueles tempos, recheado de gente boa.

No embalo de Alucinação, viria uma sequência de discos que são considerados seus melhores trabalhos. Coração Selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978), Era uma Vez um Homem e Seu Tempo (1979). Seria exagero dizer que ele conseguiu replicar o impacto de Alucinação mas essa trinca contém músicas excelentes.

Com a chegada dos anos 1980 e o estabelecimento de novas tendências como o Synth Pop e o Rock Brasil, a geração de Belchior começou a cair no ostracismo. Muitos discos do cantor nessa época passam despercebidos, quando não eram alvo de críticas pelas tentativas de adequação a sonoridade da moda.

Em 1999, na época do lançamento de Auto-retrato. Depois disso, o bigodudo de Sobral simplesmente sumiu, virando até meme de Facebook (Cleo Velleda).

O cenário não mudou nos anos 1990. Discos pouco lembrados e o cantor bem longe da cena pop. Os shows porém, continuavam, mas nos anos 2000 as coisas mudaram. Belchior lançou apenas um trabalho intitulado Pessoal do Ceará com Ednardo e Amelinha em 2002. Seria seu último lançamento excluindo-se uma coletânea colocada nas lojas pela Som Livre em 2008.

A segunda metade da década é o início de um auto-exílio do cantor, como ficou evidente em 2009 na famigerada reportagem do Fantástico, pegando carona no meme da internet Cadê o Belchior?.

Parece que foi ontem que essa reportagem passou na TV… Ao abandonar sua carreira e acumular dívidas, Belchior parecia estar tocando um foda-se para sua própria vida e obrigações. Tudo isso para se dedicar a um trabalho de tradução para uma linguagem popular do clássico A Divina Comédia de Dante Alighieri. O projeto de tradução, pelo menos até o presente momento, jamais veio à luz. Pode ser que agora que Belchior morreu isso saia de alguma gaveta, se é que ficou pronto.

A impressão que fica é que o cantor vivia um conflito. Era como se ele não se sentisse feliz consigo mesmo por vender sua arte. Ao mesmo tempo, era uma pessoa que de certa forma se deixou seduzir pelo luxo que a fama lhe proporcionou, como a Mercedes-Benz que ele simplesmente abandonou indica.

As expectativas frustradas de uma carreira que ficou apagada após os anos 1980, mais esse conflito interno entre seus ideais Marxistas, porque não, e seu lado Bon-Vivant o levaram à decisão extrema de largar sua companheira por mais de trinta anos e seguir com uma namorada nova, cheia de ideias utópicas de esquerda em busca de uma vida sem posses, morando de favor em casas de fãs ou instituições de caridade.

Ou seria apenas uma forma de fugir de dívidas ocasionadas por decisões equivocadas do ponto de vista administrativo de sua carreira? Talvez o tempo nos traga essa resposta.

A única coisa certa é que Belchior deixou uma obra fantástica que reflete muito bem o espírito daquela segunda metade dos anos 1970 aqui no Brasil. Portanto, não deixe de ouvir clássicos como Alucinação, Coração Selvagem e outros. Afinal, longe das contradições, um grande compositor brasileiro nos deixou, foi para o alto céu por si só e por seus meios, já que ele tem Medo de Avião

Valeu, Belchior! Abraços e até o próximo SnaB!

1 comentário em “Som n’A BOINA #13: Chegou ao fim a misteriosa trajetória de Belchior”

  1. André,
    Mais um belo trabalho apesar de ser descrito e muito bem sobre o nosso Belchior de nome tão grande. Falar de suas músicas, e de seu legado é importante. Mas acabou desvirtuando-se da realidade de uma vida boa, e não sabendo aproveitar o que ganhou se enchendo de dividas e dúvidas. A ideologia o fez confuso. Mas o legado como cantor foi excelente e isso que devemos reverenciar no Belchior.
    Agora vai voltar a cantar nas alturas e em outro mundo, alegrando os que já partiram.
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

Deixe uma resposta