Som n’A BOINA #20: Jimi Hendrix, muito mais que o “showman da guitarra”

(Douglas Sardo)

Seria possível um cara ser considerado por muitos como o maior guitarrista da história e ainda assim ser subestimado? Com o lendário Are You Experienced?, recentemente alcançando 50 anos de vida, o SnaB faz uma reflexão sobre o legado de Jimi Hendrix, um músico que de várias formas foi refém do próprio sucesso apesar de sempre tentar se desvincilhar do rótulo de cara que tocava guitarra com os dentes.

Não se espante se você se surpreender. Afinal, Hendrix não era apenas um ás das guitarras. Ele tinha algo mais. Você sabia? Então vai ficar sabendo…

Somos eternos rotuladores

Rótulo é uma palavra muito usada. Às vezes em excesso. Mas em algumas situações você simplesmente não consegue fugir dessa expressão, ela é a única forma de explicar certas questões que rondam a mídia.

Exemplo: rotularam Lobão de ativista político. Ele continua fazendo shows e até lançou um disco recentemente. Mas como parte de suas opiniões políticas (não estou dizendo que concordo com elas) incomoda alguns, taxaram ele de ex-músico. Em contrapartida, Caetano Veloso vive emitindo opiniões políticas controversas, mas como ele sempre cai nas graças de boa parte da mídia ninguém nunca o rotulou de ex-músico, ou ativista político.

Aliás, acho que Caetano vende hoje menos discos que Lobão, não que isso seja parâmetro de qualidade, mas serve para mostrar que o baiano não é necessariamente o mais relevante dos dois, artisticamente falando.

Então, o que nos leva a criar esses rótulos? Ela… a tal zona de conforto!

Estamos na nossa zona de conforto quando falamos que Lobão é um ex-músico. Estamos na nossa zona de conforto quando estabelecemos Alain Prost como o Professor. Criamos esse tipo de rótulo, pois assim limitamos a conversa, a discussão. Não preciso saber da temporada de 1981 do Prost, ele é o Professeur, sempre teve uma abordagem conservadora... Não preciso ouvir o disco Cosmo’s Factory do Creedence pois já ouvi “Have You Ever Seen The Rain”, etc…

O compacto com a manjadíssima Have You Ever Seen the Rain. Para mim, passa longe de ser a melhor música do Creedence, assim como o melhor de Hendrix passa longe das firulas na guitarra (Reprodução)

Muitos desses rótulos são criados pela mídia. Trabalhando na imprensa, muitas vezes alguém precisa simplificar as coisas. É preciso dizer mais com menos e tentar alcançar o maior público possível.

Portanto quanto mais a informação for fácil, mais ela vai ser assimilada e isso significa, de certa forma, que o trabalho da mídia foi bem feito. Mesmo que em detrimento de detalhes ás vezes fundamentais.

Uma vez estabelecida a nossa ideia de rótulo, chegamos ao personagem desse texto:

O Hendrix escondido atrás do showman

James Marshall Hendrix foi um dos maiores (senão o maior) guitarristas da história!

Bom, isso provavelmente você já sabia. O que a maioria da mídia não fala porque não gosta tanto assim de sua música, ou porque simplesmente não ouviu seu trabalho e prefere ficar na tal zona de conforto, é que Hendrix foi muito mais do que um guitarrista firulento, muito mais do que aquele show em Woodstock, o hino americano tocado na guitarra, os solos tocados com os dentes, o fogo em Monterrey…

Hendrix foi um músico de mão cheia! Essa é a verdade. E confesso que me incomoda muito ler e ouvir por aí algumas coisas do tipo: se ele estivesse vivo hoje estaria fazendo trabalhos de qualidade duvidosa, envolvido em parcerias no melhor estilo “Feat.” da atualidade, como um artista pop qualquer.

Será? Sinceramente, não consigo acreditar nessa possibilidade.

O produtor Eddie Kramer dá alguns detalhes da produção de 1983…(A Merman I Should Turn To Be) que ele define como pintura sônica. Uma pérola um tanto esquecida de Hendrix:

Alguns entendidos de música usam o fato de sua carreira ter sido muito curta para colocá-lo distante de qualquer discussão que não seja quem foi o melhor guitarrista.

Discordo totalmente! Jimi tinha uma presença de palco fantástica. Era um excelente músico ao vivo. Suas letras e composições não deviam muito para os melhores de seu tempo (e olha que todos sabemos que a competição na época era acirrada), sem falar na sua voz que era absurda e só ele conseguia não gostar.

Em estúdio, Hendrix era um visionário capaz de criar coisas além da imaginação de muitos músicos mais experientes. Apenas escute o álbum Electric Ladyland e você vai entender do que estou falando. Um cara capaz de fazer uma versão de uma música de Bob Dylan e ter essa versão reconhecida como a melhor pelo próprio Dylan?

Parece até piada, mas ele fez isso em All Along the Watchtower:

Com todos esses predicados, qual teria sido o calcanhar de aquiles para ele não ser colocado em outro patamar quando o assunto é quem foi o maior músico?

É difícil de dizer, mas provavelmente tem a ver com o próprio trabalho braçal que Jimi estava disposto a realizar no estúdio. O guitarrista ficou obcecado a ponto de repetir centenas de takes de uma única música até alcançar os resultados que desejava. Isso obviamente frustrava músicos como Mitch Mitchel e Noel Redding, que eram músicos mais despojados e não se encaixavam no perfil do artista obstinado em busca da música perfeita.

As duas capas de Are You Experienced, lançado em 12 de Maio de 1967.  Acima, temos a original do lançamento no Reino Unido, com a foto tirada por Bruce Fleming. Hendrix não gostou do resultado e pediu uma sessão de fotos com Karl Ferris. O resultado é a capa usada no lançamento americano do disco, a única capa de álbum que Jimi gostou! (Reprodução)

Esse era Jimi Hendrix. O artista obstinado em busca do último som. E essa busca pela perfeição o levou a desintegrar o The Jimi Hendrix Experience. E depois disso ele nunca mais conseguiu se acertar com outra banda.

Parando para pensar um pouco, não é difícil entender porque um baterista ou um guitarrista não gostariam de tocar com ele. Seriam apenas uma banda de fundo. Trabalhariam num esquema diferente de um grupo como os Beatles (onde ainda assim, Ringo e George eram os Beatles da classe econômica) por exemplo. Um músico que tocasse com Hendrix ficaria apagado atrás da imagem dele.

Não bastasse essa dificuldade em arranjar parceiros (ele até conseguiu se juntar com Billy Cox e Buddy Miles para o Band of Gypsys, que ficou ótimo mas durou pouco) Jimi passou a ter de lidar com diversas pressões artísticas. Em todo show, o público exigia que ele demonstrasse sua virtuosidade com a guitarra ao tocar com ela nas costas, ou com os dentes.

Truques que ele aprendeu para impressionar e ganhar dinheiro quando jovem, mas que agora se tornavam um exercício tedioso. Ele nunca escondeu que repetir essas façanhas era algo que não lhe interessava, e que queria apenas que as pessoas ouvissem suas novas músicas, e não apenas as da fase Experience.

 

E se o público não estava satisfeito apenas em ouvir Jimi Hendrix, muito menos as gravadoras e empresários que lidavam com o músico. Para estes era fundamental recriar o Experience com Redding e Mitchell, aumentando assim a venda de discos em cima da imagem já estabelecida pela banda. Jimi cedeu à todas essas pressões, e lamentavelmente acredito que ele morreu como um artista frustrado que não conseguiu realizar tudo que pretendia.

Morrer frustrado talvez seja o destino de todo artista que se preze, pois essas pessoas nunca estão realmente satisfeitas com o que realizaram e sempre buscam o próximo passo. Mas se você quer fazer jus a toda essa frustração de Hendrix, vá além dos solos com os dentes ou o show em Woodstock e procure ouvir tudo que ele produziu.

Apesar de ter sido prisioneiro do próprio sucesso, Jimi Hendrix nunca deixou que isso afetasse sua criação. Ele foi provavelmente a pessoa mais musical a ter pisado na face da terra. E isso, nenhuma roda de conversa, ranking ou rótulo é capaz de contrariar.

Até o próximo SnaB, com agradecimentos especiais ao André que segurou as pontas por aqui durante duas semanas por conta de alguns imprevistos! Chefe para toda prova, vamos conver!

Abraço!

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