Som n’A BOINA #22: George Harrison e a epopéia dos Traveling Wilburys

O Rock é aquele estilo que, muito além das músicas, registra aventuras e encontros que são dignos de livros, novelas, filmes e o escambau. Esses encontros já foram responsáveis por tornar lendas ainda mais lendas, por reviver nomes do passado para uma atualidade ou para, simplesmente, juntar muita gente boa num lugar apenas.

Na volta do SnaB, depois de um breve período de ausência, resolvi revisitar um dos maiores encontros que o Rock pode presenciar em milênios. E o que mais chama a atenção é que este encontro em especial foi algo totalmente por acaso mas que marcou indelevelmente o mundo da música, mesmo que por meros três anos. Tudo isso graças aos encontrões do caçula de Liverpool durante suas atividades profissionais.

Eis a incrível história de George Harrison e das lendas que, juntas, deram vida ao fantástico Traveling Wilburys, talvez a maior reunião de rockers em uma banda na história.

O excelente Cloud Nine, de 1987, um dos melhores discos de um beatle em carreira solo. Foi na preparação para o lançamento do disco que a coisa foi acontecendo com George e com quem vinha junto na viagem (Reprodução)

Pra começo de conversa, acompanhando as andanças de Mr. Harrison pela música depois do tempo de Beatles era algo de aparições esparsas, mas quando elas aconteciam, viraram história. Foi assim com seu primeiro trabalho solo (All Things Must Pass), com o Concerto Para Bangladesh e estava o sendo com Cloud Nine, para muitos um dos melhores álbuns solo de um beatle.

O disco era o primeiro trabalho de Harrison depois de cinco anos longe das prateleiras das lojas (Gone Troppo, de 1982, era o último). E os louros de Cloud Nine estavam sendo bem colhidos. Aquela história de que o que George tocava, virava ouro, e não era mentira. Até mesmo os discos mais obscuros tinham alguma coisa boa para mostrar, basta pesquisar e ouvir.

A procura de formas para promover o lançamento do disco, os executivos da Warner (gravadora de Harrison) pediram para George que fosse feita uma faixa inédita para lançamento no single preliminar da obra, juntamente de This Is Love. Sem achar nada relevante para tanto, o jovem beatle resolveu seguir um conselho simples, vindo do produtor, amigo e membro da Electric Light Orchestra (ELO), Jeff Lynne: Trocar um lero com Bob Dylan para pedir-lhe emprestado o estúdio que o cantor possuía em sua residência, na Califórnia.

Bob não pestanejou. Já conhecia os Beatles há tempos e o pedido de George foi mais do que um auto-convite para uma visitinha. Literalmente escancarou as portas do estúdio para o moço, que pediu também que Lynne o encontrasse por lá para produzir algo. Aquelas alturas, Jeff tinha outro cliente consigo: Nada menos que Roy The Big O Orbison, que estava tentando voltar a evidencia na cena musical mundial. Jeff perguntou a George se Roy podia os acompanhar, algo que o beatle respondeu sem pestanejos. Afinal, em um tempo distante, Orbison era um dos tantos roqueiros clássicos que os Beatles admiravam.

A escalação da banda chega a dar arrepios. Afinal, como foi possível juntar tanta gente grande no mesmo espaço e tão bem? Segue ai (esq-dir): Bob Dylan (o dono do estúdio), Jeff Lynne (do ELO, produtor e que sugeriu pegar o estudio de Dylan emprestado), Tom Petty (que veio literalmente junto de George para a Califórnia), Roy Orbison (que tinha Lynne como produtor e o acompanhou até o estúdio) e, claro, George Harrison, que criou a coisa toda sem querer (Reprodução)

No caminho para a casa de Dylan, eis que George se pega sem guitarra na mão. Resolveu, então, dar uma paradinha casual na casa de Tom Petty, que começava a colocar as manguinhas de fora numa bem sucedida carreira solo, para pegar uma guitarra que havia esquecido por lá numa noite de bebericadas e bom papo. Ao saber para onde o beatle iria, Petty não perdeu a chance, ia junto com ele na viagem.

Seria a fórmula para o desastre? Afinal, é uma coleção de estrelas juntas, cada uma com seus trabalhos, egos e pensamentos, juntas no mesmo estúdio para um qualquer coisa. Acontece que a coisa degringolou de uma forma surpreendente. Cada um completava a nova composição, girando em torno da frase handle with care, que George havia lido numa caixa jogada num canto do velho estúdio de Dylan.

Ao chegar nas mãos da Warner, os executivos ouviram essa joia ai abaixo… e os planos do single não seriam com ela. Handle With Care tinha um outro caminho a seguir:

E foi assim que, de um verdadeiro por acaso nascia a reunião épica a qual se daria a cada um uma alcunha na família Wilbury, um termo nascido de uma piada interna durante as sessões de Cloud Nine. Ajustes no nome aqui e ali e pronto: Estavam vivos os Traveling Wilburys, que para cada um tinha significados distintos, colocados todos num pano comum.

George era o mais empolgado, partiu dele as iniciativas para reunir de vez a eles todos numa banda, coisa que ele mesmo não vivia há tempos e que foi muito bem aceito pela turma engravatada da Warner. Petty, cuja amizade com George já era de longa data, aceitou prontamente; Big O viu uma chance de engatilhar de vez a volta a evidência na música; Lynne podia dividir as funções de produtor e membro de uma banda dado o hiato da ELO; enquanto Dylan podia se divertir com algo numa época em que sua criatividade andava meio perdida.

Os Wilburys gravando juntos no clipe de Handle With Care. Pouca gente boa no mesmo lugar (Reprodução)

Cada um ganhou também um pseudônimo: George era Nelson Wilbury, Jeff Lynne seria Otis Wilbury, Roy Orbison estava alcunhado como Lefty Wilbury, Tom Petty encarnava Charlie T. Wilbury Jr. e Dylan incorporava Lucky Wilbury. Juntos, em reuniões leves e cheias de criatividade, procuravam um caminho mais natural possível no Rock, abrindo mão de recursos sofisticados demais e agindo de forma totalmente democrática, com contribuições e vocais bem divididos entre todos. Uma forma simples de lidar com tantos egos e estrelas num lugar só.

Era neste clima que era concebido o The Traveling Wilburys Vol. 1, o primeiro disco do quinteto, que contava ainda com as notas musicais de Jim Keltner (bateria), Jim Horn (saxofone), Ray Cooper e Ian Wallace (percussão) na produção final. A sonoridade namorando com o Country e o Folk, somada a melodia que recorda em partes as melodias dos anos 50, foi a grande marca do disco, com canções fabulosas que vão além de Handle With Care, passam também por Dirty World, Not Alone Anymore, a fabulosa End of The Line, e outras tantas.

O primeiro disco (Vol. 1). Boas faixas, critica positiva um bom clima. Mas o azar de Roy Orbison daria a última cartada (Reprodução)

Mesmo sem dar uma contribuição nas composições, Roy Orbison mostrou a plenitude da sua voz, com passagens que faziam os colegas pararem o que estavam fazendo para acompanhar o velho ídolo. O lançamento do disco foi na segunda metade de 1988, aclamado pela crítica e um visível sucesso, prova de que o por acaso de George tinha dado certo. No entanto, o azar de Big O era algo que o perseguia, e os Wilburys, infelizmente, seriam vitimas dele.

A coleção de infortúnios de Roy era algo que assustava no meio musical. O vozerio de Pretty Woman, de toque maleável na guitarra e trajando sempre os indefectíveis óculos escuros, já havia passado por cada uma que nem o mais cético acredita: A carreira estagnou-se, perdera a mulher num acidente de motocicleta, perdeu dois dos três filhos e a casa num incêndio e vivia a sombra do estrelato, ocasionalmente aparecendo na televisão, como no encontro com Johnny Cash, Carl Perkins e Jerry Lee Lewis, para homenagear Elvis Presley, em 1977:

A morte veio cedo demais: Em dezembro de 1988, Big O sofria um infarto e morreria. O sucesso com os Wilburys e um novo disco foram interrompidos bruscamente (Reprodução)

A vida ao lado dos Wilburys não podia ser melhor, isto até o coração parar. Roy era vitima de um ataque cardíaco em 6 de dezembro de 1988, deixando por terminar (e terminado posteriormente) o excepcional Mystery Girl e uma lacuna impreenchível para a recém-formada banda. O breque nas atividades foi inevitável e cada um, por momento, seguiu com suas carreiras.

Tempinho depois, George voltou a chamar a turma para o que seria, de certo, uma despedida condigna. Cogitou-se, por alto, chamar para o grupo outro ídolo dos anos 50: o vozerio de Runaway, Del Shannon. No entanto, vivendo uma profunda depressão, o cantor suicidou-se em fevereiro de 1990 com um tiro de espingarda, tendo antes recusado o convite. Seriam apenas quatro Wilburys para gravar o segundo e derradeiro disco, comicamente chamado de Vol. 3, para confundir a imprensa e os colecionadores, como justificaria Harrison na época.

O último disco, em 1990. Um tributo justo a Orbison e um fim digno ao grupo (Reprodução)

Em maio de 1990, disco era lançado, bem recebido pela critica mas sem a mesma força do antecessor, mas com sons interessantes como Inside Out e She’s My Baby. Depois disso, os fãs esperavam uma nova reunião da super banda, sempre especulada e nunca confirmada. Mas os sonhos dos admiradores dos Wilburys ficaram mesmo no campo dos sonhos quando, em novembro de 2001, cercado de amigos, da família e ao som da citara do sempre tutor Ravi Shankar, George Harrison falecia vencido pelo câncer de pulmão.

Mesmo sem mais se encontrarem, a lembrança da reunião sensacional não foi perdida na morte de dois dos seus ilustres membros. Nascida num acaso profissional do caçula de Liverpool para se tornar eterna, a história do Traveling Wilburys foi o que, no inicio deste SnaB, eu dissera: Uma daquelas que valeria um bom livro.

Ainda bem na ativa, dois dos Wilburys – Jeff Lynne e Tom Petty – continuam levando Handle With Care consigo em seus setlists, como é nas versões que seguem aqui abaixo (ambas de 2012)… e que encerram essa crônica sobre o encontro casual mais feliz do Rock.

Até o próximo SnaB! Enfim, de volta!

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