(Fotos: Lucas Prudêncio)
…ela não percebeu quando a lente indiscreta estava, sem pudor ou timidez, a registrar o desmoronar da pedra em forma de lágrima quando os cantores rasgaram seu refrão.
Os olhos em carmim, tangidos por uma saudade que só aquela alma, diante do pavilhão sorridente que a apertava na grade, sentia a sufocar e ainda a apertava mais que a multidão.
O amigo atento, teve tempo de trocar a lente. Apontou a objetiva tal como a mira de um atirador de elite. Era o momento, ele sabia, talvez ela não sabia, mas desnudou sua alma ali mesmo. A tal da maior saudade de todos os tempos.
Este cronista nunca foi fã destes garotos do campo montados em picapes de luxo e com paioças que pareciam estâncias turísticas em suas aventuras musicais. As vezes penso que, com sua postura carnavalesca, meio que fazem Tonico & Tinoco revirarem nos seus esquifes. Mas cada um é cada um, já dizia Claudio Zoli.
E o assunto não é qualidade musical, longe disso. Cada músico está ali em cima daquele palco pra fazer o que gosta, se divertir, extasiar a multidão e, no fim do dia, cair morto de cansado sabendo que o cachê, o soldo da guerra noturna, cairá na conta para encarar os boletos da vida “lá fora”.
Mas aqueles dois no palco, para aquela menina, eram os caras que tornavam sua vida uma poesia. Ao seu jeito, sua maneira, sua forma de cantar e versar. Ela acorda com o som, trabalhava com o som, se divertia, sonhava, enluarava com o som batendo-lhe a mente quase como uma carícia diária. Eram os versos que ela queria ouvir, viver, tomar pra si.
Ela estava lá… tinha madrugado pra isso, e atrás dela naquela fila de outras mil almas, a dela não via nos olhos apenas os ídolos que lhe apeteciam o coração. Parecia que uma vida toda estava lhe fazendo um duro revival de toda uma dor estancada… a tal da “maior saudade”.
Este martelo diário que, apesar de alma trancafiada começar a se abrir, ainda era dolorido se a mão passava levemente sobre a ferida em cicatrização. As horas de um dia passavam, consumindo seu físico mais, estranhamente, sendo tônico para uma mente focada, concentrada naquela entrada que a levaria perto dos seus cavalheiros de armadura brilhante.
E ela vinha – a tal da “maior saudade” – a lhe bater o coração sem que percebesse… Onde estava o seu cavalheiro? O cara que disparava contra si os “eu te amo” mais aconchegantes da vida toda?
O fotógrafo contava pra mim de sua história. E como toda obra de arte, carrega em si uma história dourada de beleza ou pesada pelo amargor do “por trás” que ela mantinha. Enquanto as lágrimas represavam, ela lembrava das curvas que a levaram até o rapaz. Era seu amor, o motivo dos versos daqueles garotos do campo estarem sendo declamados em música para ela.
Para ela, o amor era novidade. Como um brinquedo precioso de uma criança sonhadora, que sorria tão somente ao vê-lo, senti-lo, usufrui-lo e protege-lo das forças que queriam o tirar de perto dela. E esta puríssima inocência do amor virgem, novo, intocável é algo que poucos seres tem o privilégio de sentir em sua intensidade maior.
Para ela, aquele homem era um fato novo que a fazia sorrir tão bobamente que poderia achar estar louca. Seus movimentos mentais direcionavam a mentalizações de possibilidades, das mais doces as mais íntimas. O corpo entrava em arrepio ao ser tocado doce e calidamente em abraços com sentires novos, sensações novas, da ponta da longa madeixa ao dedo do cálido pé.
Era tudo novo… o amor e o sofrer. E que dor lancinante quando algo, um fato da vida ou um verso desafinado, aparece e lhe corta o papel do roteiro do romance como uma tesoura, uma faca, uma guilhotina: Uma madrugada, um carro desgovernado… sangue, inconsciência, morte… Ele não está mais ali.
A ferida está aberta… dias de sangue vertendo sem controle, a dor vem no lugar da lágrima, mas a lágrima não quer sair da visão. Dias turvos, cinzentos, e o agarrar incontido a algo que somente ela sabia que podia aplacar esse peso sem precedente que o pequeno corpo carregava: a musica, seus cantores, suas poesias.
A boa fã desvia o olhar, em momentâneo, para os cavalheiros. Estes que assinam papéis, trabalhos, fazem de sua vida virtual uma vitrine de experiências, talvez para ocular esse corre-corre entre composições, esse jeito cigano de correr rincões, subindo em palcos, palacetes, entrando em casas em meia-luz, tragando pinga e, entre um coração de mão e outro, não descuidando da letra, da melodia, sendo humanos quando o nervosismo remete a origem deles próprios.
Ela os observa em gratidão, em extase. Ao subirem no seu enésimo palco da vida cigana, eles cantam. Chamam para si tantas (e tantos) que querem mergulhar no ineditísimo da vida. Satirizar seus desencontros, rotular seu “way of life” com os versos… se apaixonar, rir, trocar beijos quase como uma orgia de Baco… deixar-se flechar com algum cupido perdido que esquece a dita farra e quebra o futil com trejeitos de amor.
E ela… nesta orgia, está lá pela “maior saudade”. E quando o músico dedilha o acorde, o coração responde involuntário: você está pronta? Ele vai ouvir também.
“Tem amores da vida que não são pra vida
Nesse caso, eu e você somos a prova viva
Tem começo que o fim nem passa na cabeça
Até que um belo dia, esse dia chega”
Teimosamente, o maxilar tende a tremer. Qualquer verso cantado será embargado e as tentativas de se segurar serão falhas miseravelmente. Ela se entrega a emoção, tenta dizer-se forte como é, mas esquece que o ser, para expulsar a dor lancinante, chora… copiosa e eloquentemente chora.
O pranto, a conjectura das lembranças doloridas do despedir forçado. Como se o cavalheiro a visse, do alto, e a tocasse sutilmente com uma brisa desconhecida que só ela sentia. Não dá mais, você precisa chorar.
O cansaço do dia, a vitória diante dos ídolos… Eles cantam, rasgam eles seus peitos para ver a platéia em emoção coletiva. E o fotógrafo, o amigo de outros cliques, chapas e retratos, percebe o momento. Uma dócil presa como tantas que já vira em outras estradas…
O registro é indelével… E estas linhas correm sem fim, sem saber a continuação de uma história em misto de pesar, dor, poesia, realidade concreta e paz incerta.
Os cantores seguiram a estrada? O fotógrafo procurou outros cliques? Mas e ela… estancou as lágrimas ou continuará o pranto em outro momento? Estará segura? Estará bem? Encontrará nova morada ao coração cansado de palpitar doloridamente?
Talvez, a beleza de linhas assim, na visão de um jornalsita-observador, seja o mistério que fica. Talvez um fim não seja necessário. A vida, esta perfeita poesia, que se encarregue de me dar as novas linhas em um futuro, e tomara elas ser daquele mesmo rosto, na mais perfeita conjunção de sentidos como aquele dia, aquele clique deixou em anais.
…ela não percebeu quando a lente indiscreta estava, sem pudor ou timidez, a registrar o desmoronar da pedra em forma de lágrima quando os cantores rasgaram seu refrão.
Era a “maior saudade”.