Panair do Brasil: Um outro crime da ditadura/regime

De todos os crimes cometidos no período da ditadura/regime militar, cada um teve seu peso, seu choque, sua dolorosa lembrança. Sequestros, prisões, repressões, desaparecimentos, assassinatos, morte. Feridas que não cicatrizam depois de mais de 50 anos que Auro de Moura Andrade declarou a vacância numa sessão tensa e negra do congresso.

No entanto, há outros crimes no rastro deste período que não mataram, e se mataram, mataram aos poucos, lenta e agonizante. São aqueles onde as canetas e decisões arbitrarias vindas dos genreais eram a lei. Foi neste período que vimos a IBAP, primeira iniciativa de fabrica de automóveis nacional, ser fechada sem razão aparente. Vimos também a moribunda Rede Tupi ser crucificada sem segunda chance, tal como fora a TV Excelsior anos antes, e tantas outras iniciativas assassinadas pelas decisões dos marechais e tecnocratas daqueles tempos.

Falando em Excelsior, ela era o ultimo baluarte de Mario Wallace Simonsen no conglomerado empresarial a qual era líder, sendo um dos mais importantes homens de negócio do Brasil. Quando a emissora, responsável por uma revolução na TV brasileira, fechou, Simonsen não estava mais vivo. Morreu praticamente junto com um dos crimes mais doloridos da aviação brasileira. O dia em que o governo militar fez pousar na marra e engolindo choros a história Panair do Brasil.

A Panair era um patrimônio, algo que se assemelhava, no exterior, a um consulado e representação brasileira pelo mundo. De 1930 a 1965 foram várias voltas ao redor da terra, com uma excelência e trabalho que muitos de seus admiradores dizem nunca mais ser igualada por ninguém.

Adorada por muitos que eram seus clientes assíduos, uma casa para quem nela trabalhou e conta histórias com os olhos lacrimosos, a Panair foi vitima de decisões de submundo, que ceifaram-na sem justificativas plausíveis e, possivelmente, a entregaram a outros, enciumados com o destino que a companhia tomara de ser forte sozinha.

As sucatas abandonadas em algum lugar no Rio de Janeiro. Foi o que os generais fizeram restar do antigo simbolo maior da aviação brasileira. Ruína que foi construída e não feita consequência de uma empresa cuja saúde financeira era invejável (Reprodução)

Glamour e força no ar

Cartaz da NYRBA, antecessora da Panair. A aquisição da empresa pela Pan Am em 1930 foi o incio de uma grande história (Reprodução)

Brevemente falando, a Panair nasceu em novembro de 1930, com parte da aquisição das rotas da antiga NYRBA (sigla da empresa que significava Nova York-Rio-Buenos Aires), pioneira nas rotas norte-sul das Américas, pela Panamerican, ou Pan Am.

O crescimento definitivo viria depois da participação no esforço de guerra, aproveitando o vazio de empresas europeias para assumir rotas aéreas e tomar uma posição de liderança na aviação comercial, além de promover uma verdadeira reforma em, pelo menos, oito aeroportos brasileiros.

Isto sem contar toda a renovação e aperfeiçoamento do sistema de controle de tráfego aéreo e comunicação aeronáutica, algo que praticamente manteve praticamente todo o sistema de tráfego aéreo nacional em funcionamento perfeito por anos.

Também nesta época, desbravou os céus com os primeiros Lockheed Constellation, uma das aeronaves vedetes da aviação comercial mundial naqueles idos. O gigantismo da companhia desperta orgulho nos antigos funcionários, tempos românticos onde pilotos, aeromoças e comissários de bordo eram vistos como seres de glamour no ar, retratados como tal nos filmes da época.

Um dos imponentes Lockheed Constellation, aeronave de luxo da Panair que ajudou no desbravamento da Europa no pós-guerra. Detalhe para os nomes de cada avião. Assim como  a Pan Am fazia com os seus (os Clippers) a Panair batizava-os com os nomes de famosos bandeirantes, ficando localizado bem perto da janela da cabine (Reprodução)

No passo das décadas seguintes, a Panair passou de um potencial a uma força aérea comercial entre as maiores do mundo, além de uma representante do Brasil nas cidades servidas pela companhia. As agencias nestas cidades, como Paris e Lisboa, eram quase como consulados brasileiros, com revistas e jornais do Brasil, café do Brasil e animadas rodas brasileiros que encontravam e conversavam com brasileiros.

Rotas feitas pela Panair cortavam a Europa por todas as direções. Paris, Frankfurt, o voo da amizade para Lisboa, o caminho para Beirute, no Libano, os Estados Unidos. No outro lado, o dever de integração e auxilio a bordo dos históricos hidroaviões Catalina nos rincões da amazônia. Cartas, remédios, serviço médico, tudo que lá faltava voava nas asas dos Catalina da Panair com primor e um toque de epopéia.

Acima, o Douglas DC-7, com a pintura especial do chamado Voo da Amizade, operado entre a Panair e a TAP (Transportes Aéreos Portugueses) entre o Rio e Lisboa. Abaixo, o fator de integração nacional nos serviços dos emblemáticos Consolidated Catalina da companhia na amazônia (Reprodução)

 

(Reprodução)

A excelência em cada serviço também é uma marca inigualável, pelo menos afirmada assim pelos antigos funcionários da companhia. Pessoas dos mais diferentes escalões sociais que voaram pela Panair não se esquecem amizades feitas com comissários e aeromoças (as vezes, até com os comandantes) em longas viagens. Além do bom trato, a limpeza e a seriedade nos tramites era levada tão a risca que surgia, desta forma, o chamado padrão Panair, pautado numa busca contante pela perfeição no atendimento.

E se, entre os passageiros era o grande show, a Panair quebrava barreiras também na engenharia. Era de sua propriedade a Companhia Eletromecânica Celma, de propriedade de Celso Rocha Miranda, que viria a ser, junto de Simonsen, um dos sócios-proprietários da Panair. A Celma foi adquirida pela companhia em 1957 e ficou responsável pela manutenção de turbinas e motores, bem como outros componentes das aeronaves da empresa e até de outras companhias. Era a primeira, unica e maior do gênero na América Latina.

A seleção de 1962 embarca para o Chile. Autoridades, esportistas, artistas, jornalistas… Clientes assíduos das escalas da Panair (Reprodução)

O auge e a morte matada

Ao entrarmos pelos anos 60, Simonsen e Rocha Miranda conseguem, enfim, adquirir o controle da Panair e, consequentemente, efetivar a tão sonhada nacionalização da companhia depois de anos de lenta separação do capital americano. Uma manobra que irritou suas duas maiores concorrentes: Varig e Cruzeiro, sobretudo a pioneira presidida por Rubem Berta, que contava por A+B com a aquisição da Panair.

Seriam mais quatro anos e pouco de desbravamento no ar. Além dos Constellation, dos Catalina nas rotas da Amazônia e outras aeronaves de curto e longo percurso, a Panair também contava na sua frota com os modernos jatos Douglas DC-8 e Sud Aviation Caravelle, este último um verdadeiro luxo no ar: Dois reatores Rolls-Royce de 10 mil Kg de empuxo instalados na fuselagem traseira, cortando o céu a mais de 800 Km/h. Uma primazia.

Acima, o Douglas DC-8, abaixo, o Caravelle, Os jatos da Panair, primazias de equipamento (Reprodução)

 

Mas, eis que chega 1964. Auro de Moura Andrade decreta a vacância do governo e o Brasil vive o temível golpe num dia 31 como este. Aqui não vale contar quem era ou não João Goulart, muito menos a filosofia política de Rocha Miranda e Simonsen, contrários a chamada revolução. O fato é que os dois proprietários da Panair tinham ligações com Goulart e com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o que para os olhos da ditadura soava como ameaça sem precedentes.

Ao chegar fevereiro de 1965, funcionando a plena, a direção da Panair recebe um telegrama dos mais improváveis: Suspensa. O ministério da aeronáutica decretava sem mais nem menos a suspensão da suas linhas aéreas. Pelos aeroportos do mundo, como em Orly (França), aviões da Varig já se colocavam prontos para assumirem as rotas da Panair, bem como os da Cruzeiro nas rotas regionais.

O mundo da aviação brasileiro praticamente parava chocado com a notícia, e ninguém entendia o porquê dela. O governo afirmava que a empresa era devedora da união mesmo tendo uma saúde financeira invejável para qualquer outra empresa à época. A Celma ia muito bem (sobrevive até hoje nas mãos da General Eletric), os aeroportos reformados pela companhia eram em terrenos seus. Imagine o patrimônio.

Uma caneta, uma decisão, e assim o governo ceifava a Panair, sem motivo aparente. Era o inicio da perseguição a Simonsen e Rocha Miranda (Reprodução)

Uma concordata preventiva foi solicitada, mas nada que sensibilizasse o gelado patrono da FABbrigadeiro Eduardo Gomes, que fardado e sem pudor, pressionou o juiz responsável para declarar improcedente o pedido. Um recorde na justiça brasileira, negativo por sinal.

Nos arredores da Celma, soldados do exercito cercavam a empresa impedindo o trabalho dos funcionários. Nos centros de comunicação, mais soldados presentes, praticamente obrigando os operadores a continuar o trabalho. Afinal, se aqueles centros, todos modernizados e controlados pela Panair, fossem parados o país teria uma hecatombe nos seu tráfego aéreo. O pior ainda eram as populações ribeirinhas da amazônia, desguarnecidas pelo serviço da companhia, suspenso e esquecido pelo regime durante o imbróglio.

O regime não se comoveu, num outro golpe matou sem choro uma verdadeira representante do Brasil no exterior. Quem, talvez, ria a toa eram Varig e Cruzeiro, beneficiadas diretamente com o feito com rotas aéreas e aeronaves como os outrora gloriosos DC-8. Rubem Berta, em algum lugar do seu escritório, parece fumar um charuto com um sorriso amarelo no rosto: Sua maior concorrente havia sido ceifada numa canetada.

Orgulhosos, felizes, em família. Pilotos, aeromoças, comissários de bordo, todos os setores que moviam a Panair sentiam uma satisfação única em cada expediente prestado pela companhia. Alegria substituída pela revolta e tristeza de uma falência decretada. Alguns não suportaram a depressão, outros seguiram a luta, a esperança de justiça e a memória da estimada casa de outros tempos (Reprodução)

Mas não parou por ai. Quando digo que fora um crime tal como uma tortura, assassinato ou desaparecimento nos tempos do regime, é porque, neste caso, a morte da Panair foi matando aos poucos muitos que dela viveram e se orgulharam. Simonsen estava apenas começando a ser perseguido por sua posição contraria ao golpe, tanto a Panair como a TV Excelsior estavam no alvo. Ele não chegou ao fim de 1965 vivo, bem como não viu o trágico fim da sua emissora, marcada na história por uma revolução na TV tupiniquim.

Demais funcionários mais tristes não suportaram o outro golpe. Suicídios foram registrados, depressões, lamentação profunda. A pressão dos órfãos da Panair foi constante, exigindo reparações, já que a volta era praticamente impossível. As elegantes aeromoças bateram o pé e pediram audiência com o presidente Castello Branco nas ruas, não se admitia a injustiça de forma alguma. Celso da Rocha Miranda morreria em 1986, Paulo Sampaio, um dos maiores entusiastas da Panair um de seus primeiros presidentes, morreu respirando e pensando na amada companhia criada por ele, em 1992.

 

 

Demorou quase 20 anos até o reconhecimento da ilegalidade da falência, e outros 10 anos para a suspensão do processo sem interferências da União. Ainda hoje, sua proibição de voar ainda existe, mas não mais a de lembrar-se dela. A cada ano, ex-funcionários da companhia reúnem-se, recordando grandes momentos, revendo amigos e, talvez, consolando-se da grande ferida que jamais será reparada.

Único sobrevivente: O Constellation da Panair restaurado e conservado no Museu da TAM, em São Paulo. Filho único de uma grande história (Reprodução)

Muitos destes personagens, hoje guardando experiência na idade, sabem que nunca mais verão a lendária Panair no ar outra vez. Nos flashes da memória, as recordações de dias de voo onde o trabalho excelente e a amizade marcavam o expediência, o orgulho de pertencer a este expoente da aviação brasileira era onipresente e o mundo olhava espantado e deslumbrado o cruzar de um Constellation da companhia pelo céu.

Sei que, em abril, estarei aqui novamente para contar aos amigos um pouco da história da Varig, justa e bonita por sinal. No entanto, quero não imaginar que esta confusão tenha começado por ela, muito embora os joguetes comerciais obscuros façam parte de muitas grandes organizações até hoje. A própria Varig também foi vitima de um governo de decisões equivocadas quando entrou em falência em agosto de 2010. Se ela teve participação no golpe contra a Panair ou foi indiretamente beneficiada, não saberemos.

Quanto a Panair do Brasil, expoente de nossa aviação comercial, ela está morta fisicamente, mas não na mente de quem a conheceu, a cantou como Elis, a viveu e a descobriu nos livros de história. Isto são coisas que a ditadura não conseguiu matar nos seus saudosos.

A frase de um título que vi na internet sobre o assunto cai perfeitamente no momento. Panair: Do céu de brigadeiro para a sucata dos generais. E é isso ai.

(Quem quiser conhecer um pouco mais a história da Panair, abaixo segue um baita documentário sobre a companhia, produzido por Marco Altberg para o Canal Brasil. Emocionante!)

3 comentários em “Panair do Brasil: Um outro crime da ditadura/regime”

  1. E André, tempos da ditadura ou regime militar.
    Muitas histórias mal contadas pelos militares e outras tantas contadas de forma distorcida pela esquerda, ou sei lá quem. Até essa revolução (supos) na verdade golpe, ocorreu dia 1º de abril e não 31 de março de 1964. Dia 1° não pegaria bem era dia da mentira. Nunca fui a favor do regime militar, se querem ganhar que concorram as eleições, porém este tempo não foi tão ruim há que vivemos recententemente em 13 anos de desgoverno do PT e sua turma. Este sim acabou com o Brasil. Qual o pior das crueldades, um regime militar ou uma ditadura branca e com resquícios de se envolver com Venezuela, Cuba, coreia do Norte … cabe analisar.
    Quanto a Panair eu quando garotinho tinha uma replica de uns 35 Cm dessa bela aeronave. REalmente acabou, uma pena e os motivos estão descritos em sua bela postagem e ou outros que falam sobre o assunto. Mas assim temos mais algumas importantes que quebraram, Varig, Cruzeiro e sempre vai ter um culpado.
    Bom creio que esta tua postagem nos leva pelo menos a uma reflexão e isso cabe sempre a pessoas de bom senso, pois alguns não tem a menor condição de avaliar pois o ódio e o partidarismo acerbado ou exacerbado não permite.
    Valeu garoto
    Parabéns!
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história

  2. Pingback: Varig: Os 90 anos da pioneira | A Boina

  3. Fantástico! Meu avô trabalhou muitos anos na Panair. Infelizmente, decretaram a falência de uma empresa que detinha um patrimônio invejável. Pior foi o Juiz ceder a pressão dos militares e não ter aceitado a concordata. Venderam patrimônio da Panair no exterior a preço de banana. A empresa foi responsável pela construção de vários aeroportos do Brasil, dentre os quais, o de Belém e São Luís. Era dona das linhas de transmissão. Enfim, não tinha como a empresa quebrar. Por isso a tristeza. O Governo Militar quebrou uma empresa que carregava com orgulho o nome do Brasil, para favorecer a Varig. Até hoje, minha mãe guarda documentos da Panair que eram do meu avô. Parabéns pelo excelente e verdadeiro texto!

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