Semana do Jornalista: Nas enchentes, informação até debaixo d’água

O fotógrafo inerente em busca do clique máximo para ilustrar algum boletim especial da cheia. Mesmo rodeado de riscos, esforçando ao máximo numa jornada, a cobertura de uma enchente em Blumenau é o momento maior de qualquer jornalista da cidade, onde em meio a tragédia todas as suas habilidades são colocadas em teste máximo em todos os elementos da notícia (Jaime Batista)

Quem vive em Blumenau, especialmente é jornalista por aqui, sabe que o dever chama todo dia. Política, polícia, trânsito, comunidade, histórias, tudo e mais um pouco acontece aqui e em todo o Vale que nos cerca. É uma caixinha de surpresas, como não poderia deixar de ser. E, nestas horas, parecemos bombeiros, naquela questão de estar pronto para qualquer incêndio.

Por falar em incêndio noticioso, não há emergência maior que pare-nos no nosso cotidiano quando o Itajaí-Açu, que está logo ali do lado, resolve subir sem controle em tempos de chuvas constantes. É o sinal verde de uma nova enchente que está começando, hora de pegar câmeras, bloquinhos, microfones e montar quarteis em emissoras e redações. Está soando o sinal de emergência.

Dr Blumenau sabia bem do que uma cheia podia causar. Logo dois anos depois da fundação da colônia, uma cheia devastaria o povoado (Reprodução)

O próprio Dr. Blumenau sabia muito bem o que uma enchente no Vale é capaz. Em 1852, apenas dois anos após a fundação da colônia, os desbravadores da região já sentiam o golpe de uma cheia de 16,30m, devastando tudo que via pela frente. Pessoas pereceram, casas destruídas, campos arruinados, prejuízos violentos para o pequeno vilarejo.

Passados exatos 28 anos – e seis enchentes – outro momento histórico teria um batismo indesejável. A elevação da freguesia a categoria de município teve de ser adiada por três anos depois que uma violenta enchente arrasou a região. Foram 17,10m de água, a maior já registrada em volume. Pereceram 11 pessoas e uma recuperação penosa até poder, enfim, se instalada a municipalidade.

Nestes tempos primordiais da colônia, os pioneiros da imprensa blumenauense já se faziam presente, numa realidade bem diferente da que estamos acostumados. Foto era uma miragem, quando muito um assombro, a contação de história contava com velhas maquinas de escrever que se limitavam, muitas vezes, a apenas contar os fatos, com um pouco de romance e entonações dignas de livro nos textos.

No blog do bom amigo de A BOINA e mestre Adalberto Day, o relato do jornal Kolonie Zeitung, de 9 de outubro daquele ano, não deixa mentir o ambiente da tragédia. Uma notícia escrita com adjetivos aos montes, um toque literário característico dos jornais da época e detalhes contados nas minucias. Veja um trecho:

Os operários perderam suas casas e todos os instrumentos de trabalho. Quantos não salvaram apenas a vida, ao refugiarem-se no sótão de suas casas com seus pertences! Aconteceram particularidades que comovem o coração. É o caso de uma mãe com cinco filhos que se refugiou numa colina nas proximidades de sua casa. A colina ruiu soterrando-os, quando já se sentiam seguros. O pai da família, que trabalhava longe, no campo, ao regressar para casa, só o que ainda pôde fazer foi preparar a sepultura para a esposa e seus cinco filhos.

Os estragos no Stadtplatz depois da cheia de 1880. O relato do Kolonie Zeitung choca a primeira vista (Reprodução/AHJFS)

Imprensa e enchente, em Blumenau, dividem o mesmo espaço. Uma destrói, assusta e mata em vezes, a outra conta, informa, avisa e pede ajuda. Foi sendo assim durante os anos, independente da frequência da cheias. Anos como 1973, com cinco cheias entre junho e agosto variando entre 9 e 12m, deram trabalho para as redações do Jornal de Santa Catarina e do Lume, para os repórteres e cinegrafistas da TV Coligadas e para os radiojornalistas da Clube, Nereu RamosBlumenau, Difusora e por ai vai.

1983/1984 – As grandes cheias, a informação constante e chocante

A cheia que muitos achavam não mais se repetir. Foram dois anos de níveis de 15m no rio, sendo 1983 o mais marcante. Lá estavam os jornalistas, atentos aos detalhes mesmo quando faltava energia elétrica ou as águas barrentas impedissem acesso a algum ponto (Antigamente em Blumenau)

Quando chegou 1983, tivemos aquele choque anafilático mental, e aquela história que a alma de um jornalista se retempera como a do povo imbatível, como dizia José Nobrega, foi posta a prova. As águas subiam sem parar, permanecendo num sobe-e-desce que parecia interminável. Sem luz, as notícias sumiram, mas não o trabalho intenso dos jornalistas em busca de informações sobre a tragédia que parecia não se repetir desde 1911.

Rodolfo Sestrem, um dos presentes no comando da Central de Radio-Emergência, em 1984 (Reprodução)

O rádio, eterno companheiro, virou o único arauto de avisos que todos no Vale tinham acesso em tempo real, ao menos os que possuíam um aparelho a pilha ou instalado no automóvel. Tempos da antiga Central de Radio-Emergência, que rodava a partir do estúdio da Radio União FM, à época localizado no 14º andar do Edifício Brasília, reunindo papas do microfone em torno da notícia.

O único registro deste momento é de um ano depois, por volta das 23h de 6 de agosto de 1984, durante mais uma grande enchente. Na transmissão, comandada pelo engenheiro Carlos Alberto Moritz, nomes como Gilmar Correa, Natanael Oliveira, Rodolfo Sestrem, Nilson Fabeni, Mirandinha e a participação do então prefeito Dalto dos Reis, vivendo mais uma grande cheia, segunda seguida.

Ainda, algumas informações sobre a Olimpíada em Los Angeles, como a medalha de ouro de Joaquim Cruz nos 800m e o jogo Brasil X Canadá no torneio olímpico de futebol, válido pelas quartas-de-final do certame. Arquivo fabuloso!

No jornal e na TV, o reflexo de uma tragédia que comovia o país. Todo o sul sofria com as chuvas, e sem energia, apenas o resto do Brasil assistia pelos telejornais as imagens que chamavam a solidariedade e pediam uma intervenção do governo, que ao menos em Blumenau, não veio por parte do governo de João Figueiredo.

Quem não se recorda, por exemplo, casa desabando na Itoupava Seca, bem diante do cinegrafista? Chocante para qualquer um que assistia o Jornal Nacional naquela noite, pelo menos os que tinham energia elétrica, já que grande parte do Vale estava as escuras em grande parte da cheia.

No Santa, as chamadas de primeira página e as imagens não mentiam para ninguém. Era o resultado dos pés na lama dos fotógrafos e jornalistas que saiam da redação para averiguar a situação em meio ao caos estabelecido. A água descia, subia, descia, voltava a subir, o ciclo não parava. Toda e qualquer informação na página do jornal eram como comunicados oficiais, alertando os moradores dos procedimentos a seguir e da situação vigente.


A tecnologia se apresenta em meio a lama

Enfim, o turbilhão entre 1983 e 1984 passou, mas errava o jornalista que pensasse que tudo estava acabado. Os anos seguiram passando, e outras cheias e tragédias entre água e lama se sucederam, sempre chamando os profissionais da notícia ao dever. Não é mentira nenhuma, mesmo entre a desolação e a correria, que este tipo de cobertura era um tanto prazerosa. É o jornalismo no puro significado da informação precisa, útil a quem o recorria para manter-se seguro no turbilhão.

Ao entrar no século XXI, já tínhamos três barragens segurando cheias e entre 2001 e 2008 foi um período onde as cheias não foram presença constante, sempre ameaçando algo maior entre uma chuva intensa e outra. Ao chegar novembro de 2008, com o volume de água caindo na cidade desde junho, não tinha outra história diferente senão a eminencia de uma enchente. Ela veio, 11,52m.

A situação no bairro Progresso nos dias da catástrofe. Em 2008, o jornalismo blumenauense sentia o impacto da cobertura pela internet e a utilização dos meios mobile para registros de imagens como estas. Repórteres voluntários e outros veículos iniciaram sua estrada na informação a partir deste evento (André Bonomini)

Mas as águas em si não foram o grande foco, diga-se de passagem. Fomos pegos de surpresa com deslizamentos, enxurradas e desolação nos morros em todo um Vale. Lá foram os jornalistas as ruas outra vez, mas neste caso estava vendo-se coisas que jamais se imaginavam ver, situações jamais imaginadas de serem vividas diante de lama, escombros e prantos por toda a parte.

Muito mais do que isso, a comunicação estava sendo apresentada de maneira oficial a um novo meio de comunicação que, nos anos seguintes, tornaria tudo mais instantâneo, até mesmo os complicados boatos, presentes em cada cheia: a internet, todos os recursos por ela disponíveis para a agilidade das informações. Imagens, relatos, pedidos, um volume jamais visto de conteúdo em uma cobertura deste nível. Estávamos cercados de detalhes, cada um mais chocante que o outro.

O deslizamento assustador na Rua Hermann Huscher, na Vila Formosa, foi conhecido graças a uma gravação amadora que saiu do prédio em frente para o mundo, com passagem até no Discovery:

A catástrofe ficou nos livros, bem como algumas cicatrizes ainda abertas pelo Vale. Já os jornalistas saíram, de certo, revigorados. Guardaram consigo o que as retinas imprimiram para a mente diante do choro dos desabrigados, do alivio do reencontro e do espanto dos estragos. Muito além disto, o universo da notícia blumenauense parece ter se aperfeiçoado ainda mais na cobertura das cheias, inovando a cada momento de emergência em que são exigidos.

De 2008 até aqui foram oito cheias, sendo a última em 2015 (10,03m). Em cada uma, um show de cobertura em todos os veículos. Notícias em tempo real aproveitando os recursos da internet, o ouvinte como uma espécie de assistente a tiracolo no Whatsapp e Facebook, plantões constantes com riqueza de informações e a presença no local dos acontecimentos, independente de como chegar lá. Um preparo comparável ao das equipes da Defesa Civil, sem nenhum exagero.

Nada que impeça o trabalho diante de uma enchente. Aqui, um registro de 2011 de parte da equipe da RICTV Record Blumenau tentando chegar na emissora, localizada num trecho alagável da Rua das Missões, na Ponta Aguda. Persistência é a lei na missão de informar (Jaime Batista)

O jornalista de Blumenau e do Vale se retemperou com o tempo e, hoje, encontra nas cheias o momento máximo de sua função. Algo que pode ser dito que é próprio de nós que convivemos neste sobre-e-desce de águas do Itajaí-Açu companheiro. A tecnologia apenas agregou-se na persistência de se manter em pé no momento de emergência, independente do tamanho da encrenca.

É sabido que outras cheias virão, inevitável mesmo em frequência menor. Mas, por trás de todas elas estará preparado um verdadeiro exercito de profissionais da notícia. Independente da água ou barreira a vir, a única coisa que não se vai na enxurrada ou se soterra com uma barreira é a informação necessária num momento como este que, quer sim ou não, se acostumamos a viver.

Sendo assim, fiquemos atentos ao tempo e, se ela vier, nos vemos na roda da notícia para mais uma odisseia em meio a tal água lodosa como fogo, aquela que, como dizia Nóbrega, retempera a alma deste povo imbatível: O blumenauense.

1 comentário em “Semana do Jornalista: Nas enchentes, informação até debaixo d’água”

  1. André,
    Bela reportagem, triste, calamitosa, mas importante para que possamos refletir sobre estas catástrofes ambientais e muitas delas culpa do próprio ser humano. Vou relatar alguns anos que lembro que presenciei das grandes: 1961, 1983/84, 1990/91 ( em 14/10/90 com 21 vitimas fatais no Garcia e uma ainda desaparecida) e a de 2008 essa a maior tragédia urbana de SC e do Brasil.
    Adalberto Day cientista social e pesquisador da história.

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