Abril de 1973. uma tarde nublada e agradável no litoral paulista. A brisa de outono já cortava as curvas da Serra do Mar, na região da estrada velha, aquela feita canção por Roberto Carlos, que disse ele que não ia mais passar, sabe?
Esse lugares mais afastados eram os preferidos, naquele tempo de engenharia na bruta, para os testes de pista dos novos modelos nacionais que iam à rua. Não raro, o turista desavisado podia passar por algum destes protótipos, prontos ou em estágio de desenvolvimento, adornados com suas placas azuis ou verdes, cercados por um batalhão ou por uma dupla de passageiros.
Conhecendo por amigos o metier do preparo de lançamento de automóveis, pouca coisa mudou para os dias atuais. As curvas de nossas estradas ainda são os melhores campos de prova para conceber um veículo “adaptado as condições das estradas brasileiras”, como dizia a velha máxima do tempo de antanho.
Mas estamos em 1973, e no país haviam apenas quatro grandes marcas de automóveis se acotovelando para dar aos olhos dos militares aquele orgulhinho de indústria própria, apesar de razoavelmente defasada diante do mundo lá fora, mas recheada dos míticos bólidos que todos os amantes dos carros velhos lembramos: Volkswagen, Ford, Chevrolet e FNM (mais tarde, o braço da Alfa Romeo no Brasil).
Eram os técnicos da marca alemã que mais cruzavam aquelas curvas apertadas levando dois carros aparentemente novos e diferentes: um amarelo e outro azul, frequentemente vistos por lá em testes e acertos. Pros motoristas e turistas que cruzavam com eles, eram coisas nunca vistas, e para dois jornalistas não mais soavam como novidade.
O escriba Nehemias Vassão e o fotógrafo Claudio Larangeira, dois dos mais celebrados do quadro da Quatro Rodas, sabiam destas movimentações constantes por lá e, para a edição de maio da revista, foram à Santos atrás de imagens.
Vassão e suas duplas, seja Larangeira ou outros tantos que ladearam o jornalista, eram aqueles tipos non gratos para as montadoras. Aventuras atrás de cliques dos chamados “segredos” se avolumavam naquele período.
Por ser um leitor antigo de QR, algumas até me lembro de cabeça até 1973: o estranho carro de três faróis usado pela Ford-Willys nos testes do Corcel, o Opala com a placa gigante “carro em teste” nas fases finais de projeto, as entradas furtivas em pátios atrás de fotos de carros como o Chevette, Dart e outros e, para a Volks, as descobertas do VW 1600 (que rendeu uma encrenca com um filme usado), do TL, do Passat em testes e, neste caso, da tão falada Mini-Variant, ou a já batizada Brasília.
O Brasília (chamado com o artigo masculino mesmo) nasceu da explosão de ideias de Rudolf Leiding, então presidente da VW brasileira. Num surto criativo, entrou na sala dos projetistas Marco Piancastelli e José Vicente Martins e rabiscou por sobre as linhas inconfundíveis do Fusca uma forma quadrada de um novo carro.
Pedido simples: um carro pequeno por fora e grande por dentro com grande área envidraçada e que pudesse usar o mesmo chassi do besouro. Os protótipos começaram a ser produzidos, tomando como base as linhas da Variant. No começo, algo desproporcional com uma traseira meramente encurtada mas, depois, as modificações que levaram as linhas retas e inconfundíveis do modelo.
Em meados de junho de 1972, a Volks brasileira já tinha praticamente definidas as linhas do agora chamado Brasília. Os testes entraram na reta final para o lançamento do carro no ano seguinte. E a turma de Leiding tinha que ser meio ligeira nos atos: a GM estava preparando o lançamento do Chevette em escala mundial, e sua chegada no mercado ia sacudir os conceitos que tanto a VW incutia na filosofia de compra dos brasileiros.
Nem é preciso dizer que QR já estava no encalço do projeto. Tradicional reveladora de segredos desde o caso da Simca Jangada, ainda nos anos 1960, a marca automotiva da casa dos Civita não media esforços atrás de cliques indiscretos para antecipar as novidades. A Brasília era mais um, mas este “mais um” teria lá seus requintes de crueldade, se é que podemos chamar assim.
De volta para aquela tarde de abril de 1973, os dois protótipos do Brasília rumaram para a estrada velha de Santos para os últimos testes de estrada. Informados de coxia, correram para lá também Vassão e Larangeira em busca de imagens exclusivas. Um adendo: à época, Claudio ainda era freelancer a serviço da revista e, vez em quando, embarcava com Nehemias na caça de segredos.
Só que diferente de hoje, onde as vezes se entrega os segredos para instigar os concorrentes, um fato destes era protegido abaixo de sete chaves. Um aparato de segurança, que precisasse lançar mão da truculência, fazia parte do roteiro, e na marca alemã (que, anos mais tarde, descobriu-se ser uma fidedigna usuária deste expediente dentro de suas paredes) não era diferente.
Ironicamente, a dupla estava em um Fuscão laranja rumo a estrada velha em busca de pistas da equipe de testes. Voltando de Cubatão, surgia o comboio de duas Variant com o pessoal da engenharia e os (temidos) seguranças da montadora. A frente, os dois protótipos, um azul e outro amarelo, já nominados como Brasília. As placas estavam amarradas nos para-choques e não haviam mais camuflagens.
Na ousadia, coisa que faz parte do diploma de um jornalista com culhões – a dupla começou a fazer fotos. Nada estava tranquilo, os carros dos seguranças tentavam ultrapassa-los e fecha-los. Foram algumas tentativas até que, sete quilômetros depois, aconteceu o cerco ao carro de Vassão e Larangeira, sob gritos e intimidações.
As cenas seguintes, um episódio tão dantesco como temerário. Encurralados pela segurança, os jornalistas chegaram a ter uma arma apontada a eles, mais precisamente para Vassão. José Roberto Massei, um dos capangas, vinha para perto aos gritos alucinados de “eu queimo”, quando a agonia o fez atirar furiosamente para baixo, atingindo a placa do Fusca.
Massei e outro segurança, Edson de Andrade, retiraram a dupla do carro a força, entre pontapés e ameaças. A câmera de Larangeira foi danificada mas o filme saiu intacto com as fotos. As agressões só não foram mais além pois a dupla foi acuada por um casal de turistas que passava pelo local. Massei, esperto no ato, deu jeito nas balas e na arma sem ser notado.
Logo, uma viatura da Polícia Rodoviária chegou ao local e colocou ordem na situação. No entanto, os desdobramentos foram mais ridículos do que se podia imaginar para um exercício da profissão como aquele. Na delegacia, questões como o tiro e a agressão física foram ignorados nos depoimentos. O ambiente era totalmente favorável aos seguranças da Volks e Vassão acabou o dia ainda advertido por “imprudência na estrada”.
Dias depois, o Fuscão da dupla foi periciado e, segundo o delegado responsável pela perícia, feita em São Bernardo de Campo, o fato poderia dar “até três anos de cadeia” por configurar-se como “tentativa de homicídio”. A mesa parecia ter virado, a repercussão negativa do caso no meio jornalístico não demorou. A Volks estava na parede por um ato tão extremado quanto foi aquele.
Na tentativa de abafar o caso, quase se protocolarmente, a marca alemã partiu para o lado da diplomacia: convidou a executiva da Editora Abril e repórteres para um amistoso almoço de desculpas na sede da empresa. Só que o jornalismo, este tão perseguido e agredido, fazia sua revanche melhor mesmo que não parecesse: na tentativa de manter o segredo, o Brasilia não era mais novidade nenhuma, entre páginas de jornais do país que repercutiram o caso.
Curiosamente, o segredo do Brasília também era dignamente desmantelado pela mesma QR, como não podia deixar de ser. A circunstância, no entanto, foi a melhor possível mesmo que a revista negue que tenha sido revanche: no mesmo dia do almoço, ia as bancas a edição de maio de 1973, com o Chevette na capa e, em destaque um pouco menor, a foto e a frase “Brasilia: a foto apesar do tiro”.
Sim, este fato já se vai há cinco décadas. Tempos de uma imprensa amordaçada pela ditadura, acuada pelos afrontes mas que sabia se dar de vencida, parafraseando o hino do Palmeiras. Na minha coleção de QR dos anos 1970, a edição de maio de 1973 tem um lugar muito especial entre todas, sobretudo para este escriba, antigo admirador da revista, da VW e, claro, da Brasilia, primeiro carro que andou na vida e cuja história se seguiu, com grande sucesso, depois do lançamento naquele mesmo 1973.
Reminisencias da história: Vassão e Larangeira seguiram registrando histórias fantásticas e revelando segredos de fábrica para a casa dos Civita. Infelizmente, Nehemias, rei das artimanhas e que abusava dos disfarces e da esperteza atrás dos furos, nos deixou em junho de 2010, aos 70 anos.
Já o cabeludo Claudio, com passagem em vários veículos segue atuando com fotografia e tem no seu portfólio verdadeiras preciosidades: os primeiros registros dos trabalhos da Copersucar-Fittipaldi entre 1973 e 1975, nos anos pré-estreia da equipe, entre outros. É um cidadão admirável, sobretudo para quem curte automobilismo (como eu).
E o Brasilia? Seria ele, de acordo com as lendas alemãs, o case de sucesso que inspiraria o projeto do Golf na Alemanha, o sucessor do Fusca. De chassi menor que o do Fusca e espaço para passageiros maior que o da Variant, o carro chegou a superar o besouro em vendas no Brasil, em 1978. Ele sairia do mercado em 1982, preterido pelo recém-chegado Gol.
A história? Tá nas páginas de QR para quem quiser ver. No MIAU deve ter este exemplar, e na cabeça da Volkswagen também…