Adalberto, meu mentor

Meu mentor…

Um dia, meu caro amigo jornalista Michel Imme me disse, num bate-papo descontraído nos corredores da FURB: “você deveria adotar o Adalberto como seu mentor. É notável que tens se inspirado nele”.

Olho para trás, o tanto que já escrevi, pesquisei, registrei e compartilhei com os colegas e amigos sobre a história e memória do nosso rincão. Não falo de Brasil, de Blumenau talvez um pouco, eu falo do Reino, do meu lar, do lar dele, mesmo estando um pouco longe desse campo verde.

Nunca foi tão difícil escrever algo, tentar sintetizar em uma crônica de despedida a gratidão, a saudade, o “não querer que se vá” do mentor. É como se as memórias afetivas me levassem de volta ao local onde minhas curiosidades pelo passado se aguçaram ainda mais: o número 228 da Rua Julio Heiden, aqui nas curvas do Progresso.

Aquele lugar era um relicário construído peça por peça por aquele cidadão franzino, magro de corpo e gordo de conhecimentos. Como lhe brilhavam os olhos quando encontravam os curiosos pelo passado do Grande Garcia. Eu podia ver isso claramente em cada encontro nosso.

O Beto, da tradicional família Day, tão nobre e conhecida nas esquinas da Glória, ali na Rua Al. Saldanha da Gama recheada das velhas moradias operárias da Empresa Industrial Garcia, onde militou por anos, entre ela e a Artex. Funcionário dedicado, que driblava os pesos da vida com inteligência e vontade de viver e absorver cada palmo do rincão em que residia.

Os calos da doença podiam ter levado a vitalidade, mas era impossível não se ver preso em uma conversa de horas e horas, entre idas e vindas no passado e presente. Como a história, esta tão dilapidada por nossos nobres neste feudo, aproxima e nos faz ser mais bons bairristas do que nunca, admito para mim e para ele.

Beto, o maior torcedor da história do Amazonas Esporte Clube. O glorioso anilado nascido do chão de fábrica que assombrava os grandes da cidade e levava aquele garoto que vestia Vasco a envergar o manto azul-celeste nas tardes de peleja no campo da EIG. Tão intenso era que, talvez em ecos presos nas fotos e materiais que tinha do Amazonas, podia se ouvir aquela cantiga de arquibancada…

“Passa pra lá!
Passa pra cá!
Arreda do caminho que o Amazonas quer passar!

Nosso goleiro é um destemido
Os nossos beques de real valor!
Alfaria vai chutando pra frente
E a nossa linha vai marcando gol!”

Ouvi tantas memórias, mas também criamos as nossas. Aquelas tardes de conversê sempre acabam no aroma bom de café que a Dalva fazia. Éramos nós três rindo no mesmo lugar, e você sempre mostrando muito mais força do que a doença podia lhe retirar.

E eu, assombrado com aquilo entre um gole de café e pedaço de cuca, talvez pensasse de forma pueril: “o Beto não vai embora tão cedo! Ele pode não aparentar, mas é muito forte, bom teimoso! Tem muita coisa pra ele fazer por aqui ainda”. Inocente, mas sempre esperando o próximo encontro, a próxima chance de absorver ainda mais conhecimento, rir ainda mais da vida lá fora.

O estilo professoral de contar a história, pautado pela graduação que tinha e pelo detalhismo das pesquisas, era visto em linhas e linhas da maior biblioteca sobre Blumenau que a internet tem: o seu blog, que nasceu na tragédia e virou um local obrigatório de consultas.

E o que me orgulha, é dizer pra todo mundo que foi lá, naquele blog tão rico quanto um cofre de banco, que escrevi minhas primeiras linhas para todos. Não era nem jornalista, mas um curioso irremediável, que só queria mergulhar mais e mais nesse passado que ele tinha vivido a olho nu.

Não importava se as passagens eram as mesmas: o Patersko no Amazonas, a recusa da moção, as obras do AG, a Schwester Martha, o Hinkeldey, o saudoso Mirelo, a política e os causos da vida. Tudo era motivo para celebrar a amizade.

Já dividimos o mesmo carro, já me chamaste de “Doril” a cada vez que sumia imerso nas minhas correrias, já levei bronca da minha mãe por querer, de alguma forma, te ajudar a acolher o acervo tão rico nos tempos da tua mudança para o último endereço…

Alias, eu seria hipócrita se dissesse que nunca me indispus com o Beto. Admito, sou um cabeça-dura por vezes, mas baixo esta mesma cabeça quantas vezes for para reconhecer os deslizes desta vida. Ele sabe, a correria do mundo da comunicação não nos permite assumir mais que as pernas pudessem, e se pudesse confidenciar um arrependimento seria não ter dado 100% de mim para fazer do seu acervo um rico museu, digno da grandeza do Garcia em que nós vivemos.

Os últimos tempos foi de uma gelada distância, mais pelo “estar distante” do que outra coisa. Duro é pensar que programava um novo encontro, para contar da União, das minhas ultimas andanças e do meu primeiro livro de poesia. Mas agora, o “Doril” foi incorporado pelo Beto, que não tinha o direito de sumir assim sem que sentássemos, hipoteticamente, na arquibancada do estádio do Amazonas uma outra vez sem pensar ser a última.

Fica aquela sensação de algo incompleto, mas é que a história sempre é incompleta, no passado e no presente. Uma lembrança contada oralmente, uma foto, um objeto qualquer, tudo reconta aquela memória que temos.

Hoje, olho para nossas fotos com um sentimento pesado pela despedida, mas imensamente grato por tanto, por ter sido o Beto grande parte do jornalista que sou hoje.

Eu olho para o lado, vejo o Sargento Junkes hasteando o pavilhão do Reino a meio-mastro, o Cantoni silenciando o microfone e reverencia, o Henrique postando uma foto sua em preto-e-branco, o Douglas desligando o motor do ônibus e a Nane – que, agora, é uma feliz patriota do Garcia e que tanto gostava de ti – não deixando conter as lágrimas sentidas.

A obra de Adalberto Day é grande, incontável, impossível de ser mensurada diante de tanto que ele fez pela memória, pela reflexão de nosso passado, movido pela sua curiosidade e paixão. Devo me sentir eternamente privilegiado de ter tido a experiência de ter aprendido, como bom aluno, em cada leitura e palavra que trocamos, ao vivo ou por telefone, no e-mail ou no blog, detalhando e contestando os erros, registrando e se maravilhando com cada pedaço de antigamente recuperado, tudo com o maior sorriso de satisfação e amizade possível.

Estou triste. Perdi um amigo, um mentor, uma inspiração. Onde ele estiver, vai bater uma bolinha com os amigos do tempo do 12, jogando na mesma terra batida do tapume. Vai reencontrar seus ídolos dos gramados anilados e vai saber das histórias que eu jamais saberei, ou saberei um dia.

Quanto a mim, resta agradecer em prece por tanto. Não há mais nada para escrever aqui, Beto, apenas acenar em lágrimas pela vossa partida e dizer, em voz embargada: gratidão.

Gratidão, Beto!

Gratidão, meu (eterno) mentor!

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